O pernambucano Guel Arraes (foto) é um dos mais respeitados criadores de televisão do Brasil. Filho do ex-governador Miguel Arraes, viveu na Argélia e na França depois que seu pai foi deposto pelo regime militar, em 1964. Em Paris, estudou antropologia e participou do Comitê do Filme Etnográfico, quando travou contato com o criador do cinema verdade, o etnólogo e documentarista Jean Rouch. De volta ao Brasil, em 1980, acabou indo para a TV Globo, onde passou a trabalhar com Silvio de Abreu e Jorge Fernando na direção de telenovelas. Aberto a diversas influências - da nouvelle vague francesa às chanchadas da Atlântida - tornou-se diretor de um núcleo de produção da Rede Globo, comandando equipes responsáveis por programas, minisséries, seriados e quadros, que se tornaram sinônimo de entretenimento inteligente na TV. “Armação Ilimitada”, “TV Pirata”, “Programa Legal”, “Comédias da Vida Privada”, “Central da Periferia”, entre tantos outros, são marcos de uma proposta estética de qualidade que permitiram abertura de espaço ao experimentalismo na maior emissora do Brasil.
Nos anos 90, Guel Arraes foi um dos responsáveis pela reconfiguração do mercado audiovisual brasileiro. Dirigida por ele, a minissérie “O Auto da Compadecida” estreou na TV no início de 1999 e foi adaptada para o cinema em 2000. Sucesso de público (2.157.166 espectadores), o longa-metragem ganhou ainda o Grande Prêmio Cinema Brasil nas categorias Melhor Diretor, Melhor Ator (Matheus Nachtergaele), Melhor Roteiro e Melhor Lançamento. No ano seguinte, o mesmo processo fez chegar às telas o filme “Caramuru - A Invenção do Brasil”, segunda minissérie adaptada para o cinema. Em 2003, em sua terceira investida na sétima arte, Guel alcançou uma das maiores bilheterias do cinema nacional com “Lisbela e o Prisioneiro” (3.169.860 espectadores).
Desde então, participou da produção de vários filmes. Entre eles: “Meu Tio Matou um Cara” (2006), dirigido por Jorge Furtado; “O Coronel e o Lobisomem” (2006), dirigido por Maurício Farias, com roteiro do próprio Guel; e “A Grande Família” (2007), também dirigido por Maurício Farias. “Romance” é seu quarto filme na direção e ele ainda assina o roteiro, ao lado de Jorge Furtado. "Romance" está em cartaz em Feira de Santana, no Orient Cineplace.
ENTREVISTA
Como surgiu a idéia de fazer o filme?
Guel Arraes - Começamos pela vontade de fazer uma história de amor. Mais especializados em comédias, tínhamos feito pouca coisa no gênero antes: a parte mais melodramática de “Lisbela e o Prisioneiro”; cenas românticas de “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado; um ou outro trecho de “Comédias da Vida Privada”... A partir dessas experiências, afinamos um tom e desenvolvemos a história de atores que se apaixonam montando uma história de amor. Foi um artifício para abordar o tema - o amor - de duas formas diferentes: ao mesmo tempo em que os personagens vivem uma história de amor em suas “vidas”, eles estão também discutindo a história do amor através da literatura com a montagem de “Tristão e Isolda”.
Como foram as filmagens?
Ensaiamos algumas semanas no próprio teatro, onde se passava boa parte das cenas. Quando fomos filmar, de alguma maneira, já éramos uma pequena trupe de teatro, como no filme.
Como foi feita a escolha do elenco?
Esta é uma etapa fundamental e começa já na redação do roteiro. Costumo rever cenas dos atores que estou escolhendo e releio o texto pensando em cada um fazendo o papel. No caso de “Romance”, houve uma preocupação extra, afinal a maioria dos personagens são atores. Representar, na vida real ou na ficção, é um dos temas do filme. Tratava-se, então, de escalar atores pra fazer papéis de atores. De alguma maneira, mais que o habitual, eles emprestam suas personalidades aos personagens.
Para a Ana, eu procurava uma atriz que tivesse a estampa de uma musa. Pensava que ela teria para o Pedro, seu diretor, o papel que teve, por exemplo, Leila Diniz para Domingos Oliveira ou Anna Karina para Jean-Luc Godard. Na segunda parte do filme, seu caráter serviria também para convencer o público de que ela se transformou numa estrela de TV. Já Pedro é o “nosso” representante no filme. É um pouco a síntese deste grupo de diretores e roteiristas, com quem trabalho há anos. Wagner é um ator da nova geração com quem nos identificamos e que nos foi revelado pelo João Falcão em “A Máquina”.
Já escrevemos a personagem da produtora pensando em duas atrizes: Andréa Beltrão ou Fernanda Torres. Se fosse a Nanda, ela se chamaria Andréa; como foi a Andréa, a personagem passou a se chamar Fernanda.
O personagem do Vladimir Brichta exige várias qualidades: tem que ter pinta de galã e ser um bom comediante, para funcionar em dupla com a Andréa. O José Wilker e o Marco Nanini vieram porque precisávamos de bons atores de comédia com autoridade junto ao público para representar tanto um grande produtor de TV quanto um ator estrelado como o Rodolfo Maia. Tonico Pereira, Bruno Garcia e Edmilson Barros são atores que eu gosto muito e aceitaram participar em papéis pequenos.
Como foi a divisão do roteiro com Jorge Furtado?
Como sempre: vamos fazendo juntos a história. Conversamos algumas horas do dia para isso. Depois, dividimos as cenas e cada um escreve os diálogos separadamente. Daí, repassamos o script, discutindo as cenas escritas, e vamos fazendo os sucessivos tratamentos. Desta vez, não nos encontramos ao vivo uma única vez. Nossa comunicação foi por Skype e e-mail, já que ele estava em Porto Alegre e eu, no Rio.
Como se deu a escolha de três estados como locação: São Paulo, Rio de Janeiro e Paraíba?
São Paulo é o grande pólo produtor e consumidor de teatro do país. É lá que está a cena alternativa da qual fazem parte Ana e Pedro. O Rio concentra a produção de TV. Essa divisão geográfica ajuda a estabelecer melhor a dicotomia arte-indústria e também a separação do casal em determinado momento da história. A Paraíba surgiu mais tarde, pela necessidade de que o especial de o “Romance de Tristão e Isolda” fosse adaptado a algum ambiente típico do Brasil e gerasse a idéia de que o ator principal seria escolhido no local, introduzindo o personagem José de Arimatéia. O Nordeste era uma escolha natural. A cultura popular nordestina é ainda bastante ligada à sua herança medieval européia de onde nos vem a história de Tristão e Isolda. A literatura de cordel, por exemplo, é também chamada de romance de cordel. Além disso, há uma razão mais prosaica, que não participa diretamente da história: uma piscada de olho para a adaptação que eu tinha feito de “O Auto da Compadecida” e que usava a mesma conexão Nordeste - Idade Média.
Como este trabalho se insere na sua filmografia?
É um trabalho diferente da maioria dos trabalhos que já fiz para a TV e para o cinema: pelo gênero, uma história de amor; e pela abordagem, mais pessoal.
Por que a escolha de montar “Tristão e Isolda” no filme?
O “Romance de Tristão e Isolda” é uma das matrizes principais dos contos de amor no Ocidente: inspirou de “Romeu e Julieta” a novelas da TV. A peça dentro do filme nos permitiu colocar falas na boca do Pedro, contando um pouco dessa história e criando um paralelo, entre o amor romântico dos amantes medievais e o amor contemporâneo do casal de “Romance”.
O personagem Pedro acredita que é preciso e possível fazer um trabalho de qualidade na televisão e enfrenta Danilo por causa disso. Com um trabalho de tantos anos na TV, como você vê a disputa entre os dois?
Pedro é o herói, claro. Mas me identifico com algumas coisas do “vilão” Danilo. Tentar falar com o grande público, por exemplo. A discussão sobre o final da história termina sendo uma conciliação dos dois pontos de vista. Há duas histórias no filme: a “vida real” e a “ficção”, e um final para cada uma, trágico e feliz, não necessariamente nesta ordem.
Qual o seu processo de trabalho para filmar?
Mesmo quando escrevo também o roteiro, como em “Romance”, costumo me preparar bastante para as filmagens. Não trabalho muito com o improviso. Evidentemente, que incorporo aqui e ali uma gag, mas nada que marque, que interfira realmente na obra. Quando eu parto para filmar, já pensei tanto naquilo - fiquei dois ou três meses trabalhando naquele roteiro - que acho difícil surgirem nas filmagens idéias muito melhores que aquelas que tivemos no processo de preparação.
Algo que também me preocupa quando estou na direção é a diversificação do material filmado. Eu não quero me arrepender na edição de não ter filmado todos os planos de que posso precisar. Por isso, filmo relativamente bastante.
Como definiria a sua relação com as várias linguagens que aparecem no longa-metragem: teatro, TV e cinema?
Apesar das experiências com o teatro, na verdade, eu tenho um trabalho só: eu trabalho com TV e cinema. Sempre procuro coisas que servem para a TV e para o cinema.
Você às vezes aparece nos créditos como produtor, outras como diretor ou roteirista, e até em várias posições ao mesmo tempo. Tem preferência por algum desses papéis?
Escrever e dirigir é a tabelinha ideal. Sempre tive vontade de escrever roteiros, mas demorei a encarar isso. Foi o trabalho mais difícil para mim. Mas como já dirigia programas, fui arranjando desvios, adiando o dia em que ia ter mesmo que escrever. Hoje, escrevo muito laboriosamente. Começar a co-escrever roteiros renovou em mim a vontade e o prazer de dirigir. Quando você recebe o texto pronto, pode ter uma idéia na direção que o roteiro não te permite por em prática, o que acaba se transformando numa limitação.
Nos anos 90, Guel Arraes foi um dos responsáveis pela reconfiguração do mercado audiovisual brasileiro. Dirigida por ele, a minissérie “O Auto da Compadecida” estreou na TV no início de 1999 e foi adaptada para o cinema em 2000. Sucesso de público (2.157.166 espectadores), o longa-metragem ganhou ainda o Grande Prêmio Cinema Brasil nas categorias Melhor Diretor, Melhor Ator (Matheus Nachtergaele), Melhor Roteiro e Melhor Lançamento. No ano seguinte, o mesmo processo fez chegar às telas o filme “Caramuru - A Invenção do Brasil”, segunda minissérie adaptada para o cinema. Em 2003, em sua terceira investida na sétima arte, Guel alcançou uma das maiores bilheterias do cinema nacional com “Lisbela e o Prisioneiro” (3.169.860 espectadores).
Desde então, participou da produção de vários filmes. Entre eles: “Meu Tio Matou um Cara” (2006), dirigido por Jorge Furtado; “O Coronel e o Lobisomem” (2006), dirigido por Maurício Farias, com roteiro do próprio Guel; e “A Grande Família” (2007), também dirigido por Maurício Farias. “Romance” é seu quarto filme na direção e ele ainda assina o roteiro, ao lado de Jorge Furtado. "Romance" está em cartaz em Feira de Santana, no Orient Cineplace.
ENTREVISTA
Como surgiu a idéia de fazer o filme?
Guel Arraes - Começamos pela vontade de fazer uma história de amor. Mais especializados em comédias, tínhamos feito pouca coisa no gênero antes: a parte mais melodramática de “Lisbela e o Prisioneiro”; cenas românticas de “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado; um ou outro trecho de “Comédias da Vida Privada”... A partir dessas experiências, afinamos um tom e desenvolvemos a história de atores que se apaixonam montando uma história de amor. Foi um artifício para abordar o tema - o amor - de duas formas diferentes: ao mesmo tempo em que os personagens vivem uma história de amor em suas “vidas”, eles estão também discutindo a história do amor através da literatura com a montagem de “Tristão e Isolda”.
Como foram as filmagens?
Ensaiamos algumas semanas no próprio teatro, onde se passava boa parte das cenas. Quando fomos filmar, de alguma maneira, já éramos uma pequena trupe de teatro, como no filme.
Como foi feita a escolha do elenco?
Esta é uma etapa fundamental e começa já na redação do roteiro. Costumo rever cenas dos atores que estou escolhendo e releio o texto pensando em cada um fazendo o papel. No caso de “Romance”, houve uma preocupação extra, afinal a maioria dos personagens são atores. Representar, na vida real ou na ficção, é um dos temas do filme. Tratava-se, então, de escalar atores pra fazer papéis de atores. De alguma maneira, mais que o habitual, eles emprestam suas personalidades aos personagens.
Para a Ana, eu procurava uma atriz que tivesse a estampa de uma musa. Pensava que ela teria para o Pedro, seu diretor, o papel que teve, por exemplo, Leila Diniz para Domingos Oliveira ou Anna Karina para Jean-Luc Godard. Na segunda parte do filme, seu caráter serviria também para convencer o público de que ela se transformou numa estrela de TV. Já Pedro é o “nosso” representante no filme. É um pouco a síntese deste grupo de diretores e roteiristas, com quem trabalho há anos. Wagner é um ator da nova geração com quem nos identificamos e que nos foi revelado pelo João Falcão em “A Máquina”.
Já escrevemos a personagem da produtora pensando em duas atrizes: Andréa Beltrão ou Fernanda Torres. Se fosse a Nanda, ela se chamaria Andréa; como foi a Andréa, a personagem passou a se chamar Fernanda.
O personagem do Vladimir Brichta exige várias qualidades: tem que ter pinta de galã e ser um bom comediante, para funcionar em dupla com a Andréa. O José Wilker e o Marco Nanini vieram porque precisávamos de bons atores de comédia com autoridade junto ao público para representar tanto um grande produtor de TV quanto um ator estrelado como o Rodolfo Maia. Tonico Pereira, Bruno Garcia e Edmilson Barros são atores que eu gosto muito e aceitaram participar em papéis pequenos.
Como foi a divisão do roteiro com Jorge Furtado?
Como sempre: vamos fazendo juntos a história. Conversamos algumas horas do dia para isso. Depois, dividimos as cenas e cada um escreve os diálogos separadamente. Daí, repassamos o script, discutindo as cenas escritas, e vamos fazendo os sucessivos tratamentos. Desta vez, não nos encontramos ao vivo uma única vez. Nossa comunicação foi por Skype e e-mail, já que ele estava em Porto Alegre e eu, no Rio.
Como se deu a escolha de três estados como locação: São Paulo, Rio de Janeiro e Paraíba?
São Paulo é o grande pólo produtor e consumidor de teatro do país. É lá que está a cena alternativa da qual fazem parte Ana e Pedro. O Rio concentra a produção de TV. Essa divisão geográfica ajuda a estabelecer melhor a dicotomia arte-indústria e também a separação do casal em determinado momento da história. A Paraíba surgiu mais tarde, pela necessidade de que o especial de o “Romance de Tristão e Isolda” fosse adaptado a algum ambiente típico do Brasil e gerasse a idéia de que o ator principal seria escolhido no local, introduzindo o personagem José de Arimatéia. O Nordeste era uma escolha natural. A cultura popular nordestina é ainda bastante ligada à sua herança medieval européia de onde nos vem a história de Tristão e Isolda. A literatura de cordel, por exemplo, é também chamada de romance de cordel. Além disso, há uma razão mais prosaica, que não participa diretamente da história: uma piscada de olho para a adaptação que eu tinha feito de “O Auto da Compadecida” e que usava a mesma conexão Nordeste - Idade Média.
Como este trabalho se insere na sua filmografia?
É um trabalho diferente da maioria dos trabalhos que já fiz para a TV e para o cinema: pelo gênero, uma história de amor; e pela abordagem, mais pessoal.
Por que a escolha de montar “Tristão e Isolda” no filme?
O “Romance de Tristão e Isolda” é uma das matrizes principais dos contos de amor no Ocidente: inspirou de “Romeu e Julieta” a novelas da TV. A peça dentro do filme nos permitiu colocar falas na boca do Pedro, contando um pouco dessa história e criando um paralelo, entre o amor romântico dos amantes medievais e o amor contemporâneo do casal de “Romance”.
O personagem Pedro acredita que é preciso e possível fazer um trabalho de qualidade na televisão e enfrenta Danilo por causa disso. Com um trabalho de tantos anos na TV, como você vê a disputa entre os dois?
Pedro é o herói, claro. Mas me identifico com algumas coisas do “vilão” Danilo. Tentar falar com o grande público, por exemplo. A discussão sobre o final da história termina sendo uma conciliação dos dois pontos de vista. Há duas histórias no filme: a “vida real” e a “ficção”, e um final para cada uma, trágico e feliz, não necessariamente nesta ordem.
Qual o seu processo de trabalho para filmar?
Mesmo quando escrevo também o roteiro, como em “Romance”, costumo me preparar bastante para as filmagens. Não trabalho muito com o improviso. Evidentemente, que incorporo aqui e ali uma gag, mas nada que marque, que interfira realmente na obra. Quando eu parto para filmar, já pensei tanto naquilo - fiquei dois ou três meses trabalhando naquele roteiro - que acho difícil surgirem nas filmagens idéias muito melhores que aquelas que tivemos no processo de preparação.
Algo que também me preocupa quando estou na direção é a diversificação do material filmado. Eu não quero me arrepender na edição de não ter filmado todos os planos de que posso precisar. Por isso, filmo relativamente bastante.
Como definiria a sua relação com as várias linguagens que aparecem no longa-metragem: teatro, TV e cinema?
Apesar das experiências com o teatro, na verdade, eu tenho um trabalho só: eu trabalho com TV e cinema. Sempre procuro coisas que servem para a TV e para o cinema.
Você às vezes aparece nos créditos como produtor, outras como diretor ou roteirista, e até em várias posições ao mesmo tempo. Tem preferência por algum desses papéis?
Escrever e dirigir é a tabelinha ideal. Sempre tive vontade de escrever roteiros, mas demorei a encarar isso. Foi o trabalho mais difícil para mim. Mas como já dirigia programas, fui arranjando desvios, adiando o dia em que ia ter mesmo que escrever. Hoje, escrevo muito laboriosamente. Começar a co-escrever roteiros renovou em mim a vontade e o prazer de dirigir. Quando você recebe o texto pronto, pode ter uma idéia na direção que o roteiro não te permite por em prática, o que acaba se transformando numa limitação.
(Entrevista extraída do press-book de "Romance")
Um comentário:
Excelente entrevista!! Parabéns Dimas. O M. Arraes é muito bom mesmo.
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