Por Demétrio
Magnoli,
Lula só pensa naquilo.
Diante das vaias (normais no ambiente dos estádios) e dos xingamentos
(deploráveis em qualquer ambiente) a Dilma Rousseff na abertura da Copa, o
presidente de facto construiu uma narrativa política balizada pela disputa
eleitoral.
A "elite branca" e a "mídia", explicou, difundem "o ódio" contra a presidente-candidata. Os
conteúdos dessa narrativa têm o potencial de provocar ferimentos profundos numa
convivência democrática que se esgarça desde a campanha de ataques sistemáticos
ao STF deflagrada pelo PT.
O partido que ocupa o
governo decidiu, oficialmente, produzir uma lista de "inimigos da pátria". É um
passo típico de tiranos - e uma confissão de aversão pelo debate público
inerente às democracias. Está lá, no site do PT, com a data de 16 de junho
(Leia AQUI).
O artigo assinado por
Alberto Cantalice, vice-presidente do partido, acusa "os setores elitistas
albergados na grande mídia" de "desgastar o governo federal e a imagem do
Brasil no exterior" e enumera nove "inimigos da pátria"- entre os quais, este
colunista.
Nas escassas 335 palavras
da acusação, o representante do PT não cita frase alguma dos acusados: a
intenção não é provar um argumento, mas difundir uma palavra de ordem.
Cortem-lhes as cabeças!, conclama o texto hidrófobo. O que fariam os Cantalices
sem as limitações impostas pelas instituições da democracia?
O artigo do PT é uma peça
digna de caluniadores que se querem inimputáveis. Ali, entre outras mentiras,
está escrito que os nove malditos "estimulam setores reacionários e
exclusivistas a maldizer os pobres e sua presença cada vez maior nos
aeroportos, nos shoppings e nos restaurantes".
Não há, claro, uma única
prova textual do crime de incitação ao ódio social. Sem qualquer sutileza,
Cantalice convida seus seguidores a caçar os "inimigos da pátria" nas ruas.
Comporta-se como um miliciano (ainda) sem milícia.
Os nove malditos quase nada
têm em comum. Politicamente, mais discordam que concordam entre si. A lista do
PT orienta-se apenas por um critério: a identificação de vozes públicas (mais
ou menos) notórias de críticos do governo federal.
O alvo óbvio é a imprensa
independente, na moldura de uma campanha de reeleição comandada pelo
ex-ministro Franklin Martins, o arauto-mor do "controle social da mídia". A
personificação dos "inimigos da pátria" é um truque circunstancial: os nomes
podem sempre variar, aos sabor das conveniências.
O truque já foi testado uma
vez, na campanha contra o STF, que personificou na figura de Joaquim Barbosa o
ataque à independência do Poder Judiciário. Eles gostariam de governar um outro
país - sem leis, sem juízes e sem o direito à divergência.
Cortem-lhes a cabeça! A
palavra de ordem emana do partido que forma o núcleo do governo. Ela está
dirigida, imediatamente, aos veículos de comunicação que publicam artigos ou
difundem comentários dos "inimigos da pátria".
A mensagem direta é esta: "Nós temos as chaves da publicidade da administração direta e das empresas
estatais; cassem a palavra dos nove malditos." A mensagem indireta tem maior
amplitude: no cenário de uma campanha eleitoral tingida de perigos, trata-se de
intimidar os jornais, os jornalistas e os analistas políticos: "Vocês podem ser
os próximos", sussurra o persuasivo porta-voz do presidente de facto.
No auge de sua
popularidade, Lula foi apupado nos Jogos Pan-Americanos de 2007. Dilma foi
vaiada na Copa das Confederações. As vaias na abertura da Copa do Mundo estavam
escritas nas estrelas, mesmo se o governo não experimentasse elevados índices
de rejeição.
O governo sabia que viriam,
tanto que operou (desastrosamente) para esconder a presidente-candidata dos
olhos do público. Mas, na acusação desvairada de Cantalice, os nove malditos
figuram como causa original da hostilidade da plateia do Itaquerão contra
Dilma!
O ditador egípcio Hosni
Mubarak atribuiu a revolução popular que o destronou a "potências estrangeiras".
Vladimir Putin disse que o dedo de Washington mobilizou um milhão de ucranianos
para derrubar o governo cleptocrático de Viktor Yanukovich. O PT bate o recorde
universal do ridículo quando culpa nove comentaristas pela recepção hostil a Dilma.
Quanto aos xingamentos, o
exemplo nasce em casa. Lula qualificou o então presidente José Sarney como "ladrão" e, dias atrás, disse que FHC "comprou" a reeleição (uma acusação que,
nos oito anos do Planalto, jamais levou à Justiça). O que gritaria o presidente
de facto no anonimato da multidão de um estádio?
Na TV Estadão, critiquei o
candidato presidencial José Serra por pregar, na hora da proclamação do triunfo
eleitoral de Dilma Rousseff, a "resistência" na "trincheira democrática".
A presidente eleita, disse
na ocasião, é a presidente de todos os brasileiros - inclusive dos que nela não
votaram. Dois anos mais tarde, escrevi uma coluna intitulada "O PT não é uma
quadrilha", publicada nos jornais 'O Globo' e 'O Estado de S. Paulo'
(25/10/2012), para enfatizar que "o PT é a representação partidária de uma
parcela significativa dos cidadãos brasileiros" e fazer o seguinte alerta às
oposições: "Na democracia, não se acusa um dos principais partidos políticos do
país de ser uma quadrilha."
A diferença crucial que me
separa dos Cantalices do PT não se encontra em nossas opiniões sobre cotas
raciais, "conselhos participativos" ou Copa do Mundo. Nós divergimos,
essencialmente, sobre o valor da liberdade política e da convivência
democrática.
Se, de fato, como sugere o
texto acusatório do PT, o que mais importa é a "imagem do país no exterior", o "inimigo da pátria" chama-se Cantalice. Nem mesmo os black blocs, as violências
policiais ou a corrupção sistemática são piores para a imagem de uma democracia
que uma "lista negra" semioficial de críticos do governo.
Fonte: "O Globo"
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