Por Gustavo Nogy
O Brasil é o país do humanismo vagabundo e da coleta seletiva de
vítimas. Que os leitores me perdoem a obsessão. Uma mulher - ela tem nome: Cinthya Magaly Moutinho de Souza - é incendiada, e se
apressam os sociólogos para encontrar não sei quais razões que possam
justificar e, no limite, defender o incendiário. Protegê-lo de nós. Um estudante - ele tem
nome: Victor
Hugo Deppman - é executado, e o especialista em Direito Penal, sob o abrigo dos
códigos e de alguma promíscua hermenêutica, acha por bem vir a público ensinar
a nós outros as virtudes civilizatórias da inimputabilidade.
Mas essas são as vítimas que não interessam aos militantes, aos
pacifistas, aos artistas beijoqueiros e aos - como é mesmo? - operadores do direito. Falta-lhes o glamour. Entram nas
estatísticas e ali ficam. Ali somem. Como se tomar parte silenciosa no
percentual de assassinatos/ano lhes fosse o mais digno epitáfio. Mas há vítimas
e vítimas.
Matemático: onze mandados de prisão
por tráfico e homicídio. Ignoro-lhe, de propósito, o nome. Assim quis ser
conhecido o traficante morto em uma perseguição da Polícia Civil do Rio de
Janeiro. Há um ano. Domingo, 5, o programa Fantástico,
da Rede Globo, exibe imagens e denuncia - depois da protocolar consulta aos
especialistas - a impropriedade da ação policial. Mais do que isso: a
desproporção entre a força estatal e o indefeso e encurralado personagem. Ele é
a vítima que importa.
Tão logo exibida a reportagem, a Comissão de Direitos Humanos da
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, presidida por Marcelo Freixo, tratou
de abrir os trabalhos: "Os recursos da Polícia Civil, os recursos da
secretaria de segurança, os investimentos em tecnologia não podem estar a
serviço desse tipo de ação". José Mariano Beltrame,
secretário de segurança e inventor daquele sistema que consiste em deslocar os
traficantes de um morro para que pacificamente possam retomar a lida em outro
morro, considera que o setor especializado tem de dar uma resposta à sociedade. O
jornalista insiste, mais do que pergunta: "Não foi mesmo execução?".
Na segunda-feira, 6, a Polícia Civil toma a decisão de
afastar de suas funções o piloto do helicóptero usado na operação. O caso havia
sido arquivado, "mas ganhou novos rumos depois da exibição, no último
domingo (5), pelo Fantástico,da caçada da polícia ao traficante, como mostrou
o RJTV".
A inversão de
valores - mais do que isso: a escolha deliberada de valores específicos e a
simpatia por determinados protagonistas - é flagrante e a mim estarrece. Não
pretendo, é evidente, ignorar que investigações precisam ser feitas; tampouco
me entusiasmo pela atuação estatal e pela ideologia do estado forte, detentor
do monopólio da força. É o que temos pra hoje, admito.
O que
impressiona é que há toda uma cosmovisão subjacente e nada parece ser gratuito.
Dentro daquela estrutura narrativa - marxismo vulgar, rousseaunismo rastaquera e algumas boas doses de
tergiversações acerca da biopolítica -, as vítimas queimadas ou executadas
barbaramente não são exatamente vítimas: são apenas dentes de uma engrenagem
muito mais complexa, que as ultrapassa e absorve. Elas estavam ali, na hora e
lugar errados. Os perpetradores de barbaridades são, por sua vez, o epifenômeno
do que o pensamento crítico costuma chamar de "sistema". Como se traficantes e
assassinos fossem apenas força bruta, força da natureza; amorais e, ipso facto, inocentes.
Se a sociedade
clama por penas mais severas e urgentes para os bandidos, os arautos do
humanismo de ocasião respondem com os direitos, com as salvaguardas, com os
estatutos, com as estatísticas. Se, no entanto, a vítima é o anti-herói; se a
vítima é o homicida; se a vítima é o traficante morto no legítimo exercício de
suas atividades, digamos, extracurriculares, daí sim algo há de ser feito.
Na prática, o
meliante, quando mata, é vítima de um tal sistema que o teria produzido; quando
morre, é vítima do mesmo sistema que o teria produzido. De um jeito ou de outro
ele nunca perde. E nós outros? Ficamos com o choro dos parentes, com a solidão
dos próximos, com a morte anônima e carente de qualquer significado, de
qualquer metáfora, de qualquer discurso. Que os mortos velem seus mortos. É o
que resta?
Um comentário:
Mais uma classe protegida pelo sistema. Hoje, nós que não pertencemos a qualquer uma dessas "minorias", só rezando prá sobrevivermos.
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