E
foram meses até que eu assistisse Cascalho,
de Tuna Espinheira, pela segunda vez. Àquela
altura, não queria acreditar no que havia visto. Fui compelido a rever Deus e o Diabo na Terra do Sol, de
Glauber Rocha; Vidas Secas, de Nelson
Pereira dos Santos, e São Bernardo, de León Hirshman - estes
dois últimos, romances de Graciliano Ramos admiravelmente adaptados para o
cinema. Cascalho, de Tuna Espinheira,
é herdeiro e dá continuidade àquela tradição grandiloqüente, todavia,
adicionando à mesma uma nova paisagem: a das Lavras Diamantinas, suja de glória
e de sangue diamantino. Há várias intersecções entre estes filmes citados em
termos de estética: os contrates barrocos de claro e escuro muito bem
utilizados pelo diretor de fotografia; a
tradição naturalista, exibindo os aspectos animalescos do comportamento de
homens embrutecidos por uma realidade brutal etc.
Boa
parte do cinema feito no Brasil - não confundir com cinema brasileiro -, parece
haver sucumbido ante os trejeitos da teledramaturgia contemporânea, resultando
em expressões menores. Cascalho desafiou
tudo isto e não poderia existir. Mas existe. "Será que o cinema barroco
brasileiro está de volta?" Pensava. Não esperava que algum diretor, a esta
altura, tivesse a coragem, o talento e o atrevimento de retomar a tradição do cinema brasileiro, hoje reduzida a um
mero assopro romântico de uma juventude quixotesca.
Sem
dúvida, Cascalho pertence à plêiade
do cinema maior. E sou forçado a me desculpar por estar utilizando de
categorias estéticas já desautorizadas pela crítica da pós-modernidade quando,
no início da década de 1960, aboliu as categorias de "belo", ou de "bom gosto"
por questões óbvias de relevância artística. No entanto, como doutor
especializado em pós-modernidade, devo dizer que, hoje, é tão necessário restituir
o direito daquelas categorias de existirem quanto era necessário destituí-las
nos anos 60 - e pelas mesmas razões. Cascalho
era um olhar para dentro do Brasil. Chegou impregnado de Brasil, representado
pela beleza dramática das Lavras Diamantinas, construída sobre os ombros do
diamante e das vidas empenhadas de graça naquela empreita épica. Ademais, a
questão do garimpo é atualíssima no Brasil e, certamente, ainda dará muito a se
saber. Esse olhar para dentro do Brasil foi reforçado por um elenco
'brasileiro'. Tenho ignorado, sumariamente, filmes brasileiros com gente de
cara 'redonda', 'bonita', que resulta em algo muito diferente do povo
brasileiro que vemos nas ruas das cidades ou nos rincões do Brasil. Nosso povo
é barroco por natureza. Um povo com uma beleza exuberante, estranhamente bela,
mas nada "clássica". Diante de certos filmes, chego a me perguntar se foram
feitos no Brasil ou na Europa. Somos o anti-povo e essa é nossa grande
contribuição à exaurida coleção dos povos. Somos um povo com um forte odor de
povo - o mesmo que sentimos quando adamos de ônibus ou nos estádios de futebol.
Querer imprimir ao cinema brasileiro os chavões estéticos típicos dos filmes
franceses ou italianos - ou mesmo de Holywood - é negá-lo. A perversa
globalização vem combatendo com afinco qualquer possibildiade de expressão de
identidades locais.
Assim,
Cascalho me comoveu sobremaneira. O
cinema brasileiro também não deveria caber dentro de enquadramento nenhum. A
cinematografia atual brasileira - e Walter Sales é uma das poucas exceções -,
embarcou de cabeça na idéia do cinema urbanóide, tendo como justificativa uma
errônea interpretação da pós-modernidade e do próprio conceito de civilização.
Acham que a melhor representação do Brasil - sobretudo para o estrangeiro - está
nesta linguagem plasmada dentro do perímetro urbano de uma metrópole. Não vejo
problemas em filmes urbanos, mas a partir do momento em que isso passa a ser
uma regra ou mesmo uma exigência, passa a ser uma prática ultrapassada e
reacionária. Fugindo a esta "escola", a Argentina tem produzido a melhor cinematografia
da América Latina hoje, extamente por se situar num outro patamar estético. A pós-modernidade levou a experiência da "cidade"
às últimas consequências e, por isso mesmo, a exauriu - embora a grande maioria
dos filmes sejam indiferentes a isto.
Iniciei
este breve artigo citando que Sérgio Milliet havia identificado que o romance
Cascalho, de Herberto Sales, inaugurou um novo ciclo dentro do romance moderno
brasileiro, dando continuidade à tradição iniciada por Jorge Amado, Rachel de
Queiroz e Graciliano Ramos, dentre outros, e quero cconcluir dizendo que o
filme Cascalho, de Tuna Espinheira,
inaugura um novo ciclo dentro do Cinema da Retomada: que chamei de
'ciclo do diamante', mas que, na verdade, se caracteriza pelo cinema maior em
si, narrando a saga de um povo. Situaando-se no mesmo patamar que Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira
dos Santos na inclusão de gentes do povo no elenco para representarem sua
própria saga, a saga do povo brasileiro.
Não
resta dúvida que Cascalho, de Tuna
Espinheira, é um novo diamante na cinematografia brasileira.
Narlan Matos é poeta e doutor em Literatura
Brasileira pela University of Illinois at Urbana Champaign
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