Por J
R Guzzo
O bem-amado Estádio do Pacaembu, santuário do
futebol paulista desde sua inauguração, em 1940, viveu na semana passada uma
noite triste. Com os portões fechados e seus 40.000 lugares vazios, o Pacaembu
serviu como tribunal para um caso raro de aplicação de justiça imediata contra
a criminalidade no futebol brasileiro de hoje.
Serviu, também, para expor em praça pública o
que pode ter sido a pior humilhação já vivida pelo Sport Club Corinthians
Paulista em seus 102 anos de existência.
Ali, como punição preliminar para o
assassinato de um garoto boliviano de 14 anos de idade, morto na semana
anterior por delinquentes da torcida organizada do Corinthians num jogo pela
Taça Libertadores da América na Bolívia, o time "da casa" foi obrigado a jogar
sem a presença do público.
É uma vergonha que carimba o clube, perante o
futebol mundial, como cúmplice ativo de criminosos. É também um caso em que se
pode dizer com certeza: "Bem feito".
O Corinthians já começou a pagar, em
dinheiro, a primeira parte da punição aplicada pelas autoridades esportivas
latino-americanas. Ficou sem os 3 milhões de reais, ou até mais, que iria
receber com a venda de ingressos na fase inicial da competição, e terá de
devolver o valor das 85 000 entradas que tinha vendido antecipadamente.
No julgamento definitivo do caso, mais
adiante, o castigo pode ficar maior. Seja qual for a pena final, será pouco: se
jogasse na Europa, o Corinthians estaria simplesmente excluído de qualquer
competição internacional durante anos a fio.
O fato realmente animador, na verdade, é o
reconhecimento oficial de que o responsável por atos criminosos cometidos em
partidas de futebol é o clube cuja torcida pratica a delinquência.
Do ponto de vista penal, a responsabilidade
pela morte do garoto Kevin Espada, no jogo disputado em Oruro, é de quem o
matou; essa é uma questão para as autoridades da Bolívia, que já colocaram na
cadeia, desde a noite do crime, doze integrantes da torcida Gaviões da Fiel.
De todos os outros
pontos de vista, a responsabilidade é, sim, do Corinthians.
O clube, a Rede Globo (que conta com o
Corinthians como um pilar de sua audiência) e boa parte da mídia esportiva
falaram muito em punição "injusta". Sustentam que o clube não tem nada a
ver com a "conduta isolada" de torcedores marginais. É falso: o Corinthians tem
tudo a ver, na pessoa do seu presidente, Mário Gobbi (um delegado de polícia,
por sinal), e de todos os demais diretores da área de futebol profissional.
Não apenas agem em cumplicidade aberta com os
marginais das torcidas organizadas, mas garantem a sua existência - abrem as
salas de diretoria para elas, financiam suas atividades e dão cobertura para os
crimes que cometem.
Uma dessas torcidas chama a si própria de
Pavilhão Nove, em homenagem à sinistra e hoje extinta prisão do Carandiru, em
São Paulo; um dos seus fundadores é o antecessor de Gobbi na presidência,
Andrés Sánchez.
Nada poderia mostrar tão bem as suas almas
como a reação que tiveram diante do assassinato de Kevin. Fora umas poucas
palavras apressadas para "lamentar" o fato, só pensaram numa coisa: quem vai
nos ressarcir dos prejuízos? E o garoto - quem vai ressarci-lo pela perda da
sua vida? O doutor Gobbi?
O clube, através da sua torcida de
delinquentes, pode agora associar-se a um segundo crime - o de obstrução da
Justiça. Um advogado da Gaviões fez, de repente, a descoberta milagrosa de um
culpado dos sonhos: com o aval prático da Rede Globo, apresentou um garoto de São
Paulo como sendo o autor do crime. Por uma dessas coincidências extraordinárias
da vida, o rapaz é menor de idade - e portanto está livre, pela lei brasileira,
de receber qualquer tipo de punição.
Foi uma coisa estranhíssima: o advogado, em
vez de defender seu cliente, fez tudo para provar que ele era o culpado. A
ideia, nessa estratégia genial, era obter a soltura imediata dos doze
corintianos presos na noite do crime, entre os quais um dos principais chefes
da Gaviões.
Aconteceu, obviamente, a única coisa que
poderia ter acontecido: as autoridades bolivianas não tomaram o menor
conhecimento da história, pois está na cara que não podem soltar todo mundo só
porque apareceu no Brasil, ou na Cochinchina, uma confissão que "muda tudo".
Sem uma atitude de verdadeiro respeito pela
decência, ou pela lei, não adiantará nada distribuir a torcedores, para ser
mostrados na Globo, cartazes pedindo "paz nos estádios". Só machucando os
clubes com penas pesadas seus diretores talvez comecem a se afastar da
bandidagem.
Fonte:
"Veja", edição que estás nas bancas
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