Por Juremir
Machado da Silva
Na crônica da semana passada,
tentei, pela milésima vez, aderir ao comunismo. Usei todos os chavões que
conhecia para justificar o projeto cubano. Não deu certo. Depois de 11 dias na
ilha de Fidel Castro, entreguei de novos os pontos.
O problema do socialismo é
sempre o real. Está certo que as utopias são virtuais, o não-lugar, mas tanto
problema com a realidade inviabiliza qualquer adesão. Volto chocado: Cuba é uma
favela no paraíso caribenho.
Não fiquei trancando no mundo
cinco estrelas do Hotel Habana Libre. Fui para a rua. Vi, ouvi e me estarreci.
Em 42 anos, Fidel construiu o inferno ao alcance de todos. Em Cuba, até os
médicos são miseráveis. Ninguém pode queixar-se de discriminação. É ainda pior.
Os cubanos gostam de uma fórmula cristalina: 'Cuba tem 11 milhões de habitantes
e cinco milhões de policiais'. Um policial pode ganhar até quatro vezes mais do que
um médico, cujo salário anda em torno de 15 dólares mensais. José, professor de
História, e Marcela, sua companheira, moram num cortiço, no centro de Havana,
com mais dez pessoas (em outros chega a 30). Não há mais água encanada. Calorosos
e necessitados de tudo, querem ser ouvidos. José tem o dom da síntese: 'Cuba é
uma prisão, um cárcere especial. Aqui já se nasce prisioneiro. E a pena é
perpétua. Não podemos viajar e somos vigiados em permanência. Tenho uma vida
tripla: nas aulas, minto para os alunos. Faço a apologia da revolução. Fora,
sei que vivo um pesadelo. Alívio é arranjar dólares com turistas'. José e
Marcela, Ariel e Julia, Paco e Adelaida, entre tantos com quem falamos, pedem
tudo: sabão, roupas, livros, dinheiro, papel higiênico, absorventes. Como não
podem entrar sozinhos nos hotéis de luxo que dominam Havana, quando convidados
por turistas, não perdem tempo: enchem os bolsos de envelopes de açúcar. O
sistema de livreta, pelo qual os cubanos recebem do governo uma espécie de
cesta básica, garante comida para uma semana. Depois, cada um que se vire.
Carne é um produto impensável.
José e Marcela, ainda assim,
quiseram mostrar a casa e servir um almoço de domingo: arroz, feijão e alguns
pedaços de fígado de boi. Uma festa. Culpa do embargo norte-americano?
Resultado da queda do Leste Europeu? José não vacila: 'Para quem tem dólares
não há embargo. A crise do Leste trouxe um agravamento da situação econômica.
Mas, se Cuba é uma ditadura, isso nada tem a ver com o bloqueio'. Cuba tem
quatro classes sociais: os altos funcionários do Estado, confortavelmente
instalados em Miramar; os militares e os policiais; os empregados de hotel (que
recebem gorjetas em dólar); e o povo. 'Para ter um emprego num hotel é preciso
ser filho de papai, ser protegido de um grande, ter influência', explica
Ricardo, engenheiro que virou mecânico e gostaria de ser mensageiro nos hotéis
luxuosos de redes internacionais.
Certa noite, numa roda de novos
amigos, brinco que, quando visito um país problemático, o regime cai logo depois
da minha saída. Respondem em uníssono: 'Vamos te expulsar daqui agora
mesmo'. Pergunto por que não se rebelam, não protestam, não matam Fidel?
Explicam que foram educados para o medo, vivem num Estado totalitário, não têm
um líder de oposição e não saberiam atacar com pedras, à moda palestina.
Prometem, no embalo das piadas, substituir todas as fotos de Che Guevara
espalhadas pela ilha por uma minha se eu assassinar Fidel para eles.
Quero explicações, definições,
mais luz. Resumem: 'Cuba é uma ditadura'. Peço demonstrações: 'Aqui não existem
eleições. A democracia participativa, direta, popular, é um fachada para a
manipulação. Não temos campanhas eleitorais, só temos um partido, um jornal,
dois canais de televisão, de propaganda, e, se fizéssemos um discurso em praça
pública para criticar o governo, seríamos presos na hora'.
Ricardo Alarcón aparece na
televisão para dizer que o sistema eleitoral de Cuba é o mais democrático do
mundo. Os telespectadores riem: 'É o braço direito da ditadura. O partido
indica o candidato a delegado de um distrito; cabe aos moradores do lugar
confirmá-lo; a partir daí, o povo não interfere em mais nada. Os delegados
confirmam os deputados; estes, o Conselho de Estado; que consagra Fidel'.
Mas e
a educação e a saúde para todos? Ariel explica: 'Temos alfabetização e
profissionalização para todos, não educação. Somos formados para ler a versão
oficial, não para a liberdade. A educação só existe para a
consciência crítica, à qual não temos direito. O sistema de saúde é bom e
garante que vivamos mais tempo para a submissão'.
José mostra-me as prostitutas,
dá os preços e diz que ninguém as condena: 'Estão ajudando as famílias a
sobreviver'. Por uma de 15 anos, estudante e bonita, 80 dólares. Quatro velhas
negras olham uma televisão em preto e branco, cuja imagem não se fixa. Tentam
ver 'Força de um Desejo'. Uma delas justifica: 'Só temos a macumba (santería) e
as novelas como alento. Fidel já nos tirou tudo.Tomara que nos deixe as novelas
brasileiras'.
Antes da partida, José exige que eu me comprometa a ter coragem
de, ao chegar ao Brasil, contar a verdade que me ensinaram: em Cuba só há 'rumvoltados'.
Fonte: "Correio do Povo", Porto Alegre-RS, em 4 de
março de 2001
Enviado por Sergio Oliveira, de Charqueadas-RS, a propósito da
celeuma com Yoani Sánchez
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