MUITA AÇÃO, POUCAS IDEIAS
Marighella é quase irretocável
como biografia. Mas nem que fosse perfeito o livro poderia elucidar o porquê de
dedicar tanto trabalho, e tantas páginas, a esse personagem
Por Augusto Nunes
Repórter obstinado, pesquisador competente e
escritor talentoso, o jornalista Mário Magalhães dedicou-se nos últimos nove
anos ao resgate da história de Carlos Marighella (1911-1969), militante
comunista na juventude, deputado constituinte com menos de 40 anos e fundador,
já cinquentão, da Ação Libertadora Nacional (ALN), a mais conhecida das siglas
que afundaram na opção pela luta armada contra a ditadura militar.
Magalhães desmonta versões fantasiosas,
corrige equívocos, resgata documentos dados por perdidos, escava episódios
desconhecidos - e reconstitui detalhadamente a trajetória do inspirador de Marighella
– O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo (Companhia das Letras; 732 páginas;
56,50 reais). Ao imprimir ritmo de thriller à narrativa, o autor torna possível
completar, sem tantas pausas ofegantes, a extensa travessia do que prefere
qualificar de reportagem.
Faltam a devoção a Stalin, o
terrorista confesso…
As estantes ganhariam uma biografia exemplar
se o biógrafo tivesse tratado Marighella sem tanta brandura. O baiano jovial
que fazia versos e gracejava com parceiros de aventuras poderia ter doado
alguns dos numerosos parágrafos que ocupa ao devoto de Stalin que celebrava "a
beleza que há em matar com naturalidade".
E a presença do guerrilheiro urbano é tão
opressiva que não sobra espaço para a aparição do terrorista confesso. No Minimanual
do Guerrilheiro Urbano, publicado em 1969, o biografado reserva um
capítulo inteiro ao terrorismo, "uma arma que o revolucionário não pode
abandonar".
Se essa face escura ganhasse a atenção
devida, a figura desenhada não pareceria inverossímil.
Ainda assim, seguiria sem resposta a única
interrogação de bom tamanho que o autor não conseguiu remover: com tantos
protagonistas da história do Brasil à espera de um bom biógrafo, por que
consumir tantos anos de investigação e tantas centenas de páginas na exumação
de um coadjuvante vocacional?
Coragem de sobra e juízo de menos
O guerrilheiro que incendiou o mundo - um
título que nem os admiradores de Che Guevara ousaram reivindicar - só existiu
no título do livro. O que emerge da leitura é um homem de ação com coragem de
sobra e juízo de menos, e que só desempenhou papel de número 1 na organização
clandestina que, de 1967 a 1969, comandou com uma arma na mão e nenhuma ideia
sensata na cabeça.
O Marighella militante e depois dirigente do
Partido Comunista Brasileiro foi apenas mais um cumpridor das ordens do
onipresente Luís Carlos Prestes, convencido de que vale tudo na implantação da
ditadura do proletariado. O Marighella deputado constituinte foi o mais
aplicado companheiro de bancada de um Jorge Amado já na antessala da
consagração como romancista.
Só soube do sequestro do embaixador
americano depois
O Marighella surpreendido pelo golpe militar
de 31 de março de 1964 só virou notícia por ter enfrentado a socos e pontapés
os policiais que o prenderam, dois meses depois do mergulho na clandestinidade,
em um cinema do Rio de Janeiro. Como não havia testemunhas da luta corporal, a
própria notícia foi às redações dos jornais assim que saiu da cadeia. Provou o
que dizia exibindo as marcas da pancadaria.
Mesmo o comandante supremo da ALN teve seus
poderes frequentemente confiscados por subordinados hierárquicos. Mário
Magalhães descobriu, por exemplo, que Marighella só soube do sequestro do
embaixador americano Charles Burke Elbrick depois de consumada, em parceria com
o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), a mais espetacular operação
promovida por partidários da luta armada.
O número 2 da ALN, Joaquim Câmara Ferreira,
endossou e ajudou a executar o plano por estar convencido de que o chefe
gostaria da ideia. Errou, revela o livro. Num raro surto de lucidez, Marighella
compreendeu que o sequestro de um embaixador dos Estados Unidos provocaria
retaliações extraordinariamente superiores, em intensidade e violência, ao
poder de fogo da minúscula tropa empenhada na perseguição do paraíso
socialista.
Sucumbiu a uma emboscada do delegado
Fleury
Capturado em 4 de setembro de 1969, Elbrick
foi solto dois dias mais tarde em troca da libertação de quinze presos
políticos. Em 4 de novembro, Marighella foi fuzilado numa rua de São Paulo por
um grupo de policiais chefiado pelo delegado Sérgio Fleury. Até sucumbir à
emboscada, ele passara dois anos sonhando na cidade com a guerrilha rural
sempre adiada por um assalto a banco, um atentado a bomba ou a execução de um
empresário.
O guerrilheiro urbano que se imaginava
incendiando os campos do Brasil jamais entrou em combate contra tropas
regulares do Exército. Só enfrentou a polícia política. Como em todas as
batalhas anteriores, perdeu.
Fonte: "Veja"
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