Artigo de J.R. Guzzo, na revista "Veja", edição desta semana:
"Nada comprova melhor os efeitos da opção de governar
"Nada comprova melhor os efeitos da opção de governar
sem trabalho do que o desastre crescente
em que se vai transformando o caso Cesare Battisti"
Sempre é possível para presidentes da República, sobretudo para os que vivem com altos índices de popularidade como Luiz Inácio Lula da Silva, governar seu país sem os incômodos, as responsabilidades e os riscos de ter posições de verdade sobre questões complicadas. Dá muito bem para Lula, apenas nos anos de 2007 e 2008, ficar 148 dias no exterior e ausente do local de trabalho, em viagens que não têm nenhum propósito - na última das suas visitas à Venezuela, pelo que se viu, foi levado a uma horta e apresentado a uma caixa de tomates. Dá para governar sem ler nada; se a leitura da imprensa lhe provoca azia, imagine-se então em que estado iria ficar lendo um relatório estratégico do ministro Mangabeira Unger. Quando surgem problemas aborrecidos, pode largar a solução, e está sempre largando, para algum subordinado; afinal, ele tem 38 ministros diferentes, secretários com "status de ministro", assessores com "status de secretário" e só Deus sabe quanta gente mais. É perfeitamente possível, em resumo, governar sem trabalhar, quando se dá à palavra "trabalho" o significado que ela tem para as pessoas comuns. Esse é o lado bom do emprego de presidente da República - mas, infelizmente, quase tudo na vida tem dois lados e, pior ainda, acaba tendo alguma consequência concreta. No caso, a consequência de levar um governo nessa toada é que a liderança do chefe simplesmente vai para o espaço – e assim que ela some o ecossistema do palácio presidencial se transforma numa usina de produzir tumultos. É o preço a pagar.
Nada comprova melhor os efeitos da opção de governar sem trabalho do que o desastre crescente em que se vai transformando o caso Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua na Itália pela prática de quatro homicídios e presenteado pelo governo brasileiro com "refúgio político". Na semana passada, enquanto a Itália chamava de volta o seu embaixador no Brasil, o presidente Lula tinha diante de si um problema que nunca quis criar e com o qual nem ele nem o Brasil vão ganhar nada, seja lá qual for a solução final. Não aconteceria o que está acontecendo se Lula, logo no começo, tivesse prestado mais atenção no que fez. Num episódio envolvendo um país com que o Brasil jamais teve interesse algum em brigar, e no qual havia pelo menos quatro pareceres dentro do governo, três contra o refúgio e um a favor, ele abandonou a decisão só para o ministro da Justiça, Tarso Genro - que resolveu tomar o partido de Battisti. O presidente não pode, é claro, ficar se metendo em tudo. Mas, se acha que a responsabilidade de resolver um caso desses não faz parte da sua lista de obrigações, o que teria de acontecer, então, para ele agir? Aí já não é delegar autoridade; fica parecendo abandono de serviço.
O próximo passo está a cargo do Supremo Tribunal Federal, que vai julgar se o ministro tinha ou não o direito de tomar a decisão que tomou; não vai julgar se ela está certa ou errada. Esta é a questão que não irá embora - e, qualquer que seja a última palavra, o jogo dos sete erros armado desde o começo pelo governo promete ficar do mesmo tamanho. Não há "crime político" a ser considerado; a Itália está pedindo a extradição de Battisti não porque ele falava mal do governo ou fazia oposição, mas sim porque foi processado, julgado e condenado por sua participação no assassinato de quatro pessoas, o que é proibido tanto pelas leis italianas como pelas leis brasileiras. Não há nenhuma prova de que o Poder Judiciário da Itália tenha feito uma "condenação política", nem de que tenha cerceado os direitos de defesa do réu; quem alega essas duas coisas, sem provar nenhuma delas, são os seus advogados. Não há motivo algum para o governo ficar falando em "soberania"; a Itália não pede que o Brasil seja menos soberano, e sim que lhe devolva um homicida condenado por violação ao Código Penal. O restante da argumentação do ministro Genro é da mesma qualidade.
O presidente da República não quis esquentar a cabeça com esses detalhes, e se chegou a pensar que algo poderia dar errado apostou que o problema, como de costume, acabaria sumindo em alguns dias. É um critério, sem dúvida. A rigor, tudo acaba realmente esquecido com o passar do tempo, mesmo as piores malfeitorias. Ninguém continua falando mal do imperador Nero, por exemplo - e olhem que o homem mandou matar a própria mãe, botou fogo em Roma e crucificou São Pedro de cabeça para baixo. Mas o esquecimento futuro não faz o errado virar certo no presente. Mais ainda, não muda o preço da fatura que tem de ser paga agora.
Sempre é possível para presidentes da República, sobretudo para os que vivem com altos índices de popularidade como Luiz Inácio Lula da Silva, governar seu país sem os incômodos, as responsabilidades e os riscos de ter posições de verdade sobre questões complicadas. Dá muito bem para Lula, apenas nos anos de 2007 e 2008, ficar 148 dias no exterior e ausente do local de trabalho, em viagens que não têm nenhum propósito - na última das suas visitas à Venezuela, pelo que se viu, foi levado a uma horta e apresentado a uma caixa de tomates. Dá para governar sem ler nada; se a leitura da imprensa lhe provoca azia, imagine-se então em que estado iria ficar lendo um relatório estratégico do ministro Mangabeira Unger. Quando surgem problemas aborrecidos, pode largar a solução, e está sempre largando, para algum subordinado; afinal, ele tem 38 ministros diferentes, secretários com "status de ministro", assessores com "status de secretário" e só Deus sabe quanta gente mais. É perfeitamente possível, em resumo, governar sem trabalhar, quando se dá à palavra "trabalho" o significado que ela tem para as pessoas comuns. Esse é o lado bom do emprego de presidente da República - mas, infelizmente, quase tudo na vida tem dois lados e, pior ainda, acaba tendo alguma consequência concreta. No caso, a consequência de levar um governo nessa toada é que a liderança do chefe simplesmente vai para o espaço – e assim que ela some o ecossistema do palácio presidencial se transforma numa usina de produzir tumultos. É o preço a pagar.
Nada comprova melhor os efeitos da opção de governar sem trabalho do que o desastre crescente em que se vai transformando o caso Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua na Itália pela prática de quatro homicídios e presenteado pelo governo brasileiro com "refúgio político". Na semana passada, enquanto a Itália chamava de volta o seu embaixador no Brasil, o presidente Lula tinha diante de si um problema que nunca quis criar e com o qual nem ele nem o Brasil vão ganhar nada, seja lá qual for a solução final. Não aconteceria o que está acontecendo se Lula, logo no começo, tivesse prestado mais atenção no que fez. Num episódio envolvendo um país com que o Brasil jamais teve interesse algum em brigar, e no qual havia pelo menos quatro pareceres dentro do governo, três contra o refúgio e um a favor, ele abandonou a decisão só para o ministro da Justiça, Tarso Genro - que resolveu tomar o partido de Battisti. O presidente não pode, é claro, ficar se metendo em tudo. Mas, se acha que a responsabilidade de resolver um caso desses não faz parte da sua lista de obrigações, o que teria de acontecer, então, para ele agir? Aí já não é delegar autoridade; fica parecendo abandono de serviço.
O próximo passo está a cargo do Supremo Tribunal Federal, que vai julgar se o ministro tinha ou não o direito de tomar a decisão que tomou; não vai julgar se ela está certa ou errada. Esta é a questão que não irá embora - e, qualquer que seja a última palavra, o jogo dos sete erros armado desde o começo pelo governo promete ficar do mesmo tamanho. Não há "crime político" a ser considerado; a Itália está pedindo a extradição de Battisti não porque ele falava mal do governo ou fazia oposição, mas sim porque foi processado, julgado e condenado por sua participação no assassinato de quatro pessoas, o que é proibido tanto pelas leis italianas como pelas leis brasileiras. Não há nenhuma prova de que o Poder Judiciário da Itália tenha feito uma "condenação política", nem de que tenha cerceado os direitos de defesa do réu; quem alega essas duas coisas, sem provar nenhuma delas, são os seus advogados. Não há motivo algum para o governo ficar falando em "soberania"; a Itália não pede que o Brasil seja menos soberano, e sim que lhe devolva um homicida condenado por violação ao Código Penal. O restante da argumentação do ministro Genro é da mesma qualidade.
O presidente da República não quis esquentar a cabeça com esses detalhes, e se chegou a pensar que algo poderia dar errado apostou que o problema, como de costume, acabaria sumindo em alguns dias. É um critério, sem dúvida. A rigor, tudo acaba realmente esquecido com o passar do tempo, mesmo as piores malfeitorias. Ninguém continua falando mal do imperador Nero, por exemplo - e olhem que o homem mandou matar a própria mãe, botou fogo em Roma e crucificou São Pedro de cabeça para baixo. Mas o esquecimento futuro não faz o errado virar certo no presente. Mais ainda, não muda o preço da fatura que tem de ser paga agora.
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