"Eu vi o caminhão da baleia/ Eu vi o cabeção da baleia/ Eu vi o barrigão da baleia/ Eu vi o umbigão da baleia/ Eu vi o rabão da baleia/ Só não vi uma coisa da baleia." - Riachão
quis o destino que presenciasse "Moby Dick", ainda menino, no ano solar de 1958 quando Pelé fazia e acontecia pelos gramados de futebol do mundo, eu vindo de Sergipe D'El Rey e já zambetando pela Praça da Sé da Bahia bisbilhotando a panaceia da vidinha do dia-a-dia. descobria a maravilha das coisas com o olhar de quem descobre. ali tava o bicho, monumental, arriado sobre um caminhão com 20 metros de comprimento e 60 toneladas de peso, necessitando diariamente aplicar à sua escura pele áspera 500 litros de formol para a conservação do animal. o cetáceo, na horizontal sobre rodas pneumáticas, ocupava o espaço que antes fora a imponente Sé Primacial do Brasil, construída na metade do século XVI.
quando adentrei pela boca escancarada da baleia fora como se adentrasse pelo pórtico solene da catedral. assim me dei conta que me banhava em séculos brasílicos. e justo naquele terreno, no seu fino subsolo, jaziam camadas de civilização com pedaços de cerâmicas, arreios de animais, cemitério de esqueletos de gente e de cachorros. tudo amalgamado naquele barro lúgubre. mas o que contava mesmo naquele momento, naquela manhã solar era a baleia jubarte que na verdade fora capturada no Oceano Atlântico, no trecho de águas inquietas entre Portugal e o Marrocos. conquanto a "Moby Dick", livro de Herman Melville fosse escrito em 1851 e a personagem arquetípica do famoso romance sendo uma baleia cachalote. acresce-se a isso, a celebridade do filme adaptado por John Huston, de 1956, em que o ator Gregory Peck faz o capitão Ahab e a sua jornada mítica de vingança à sombra do inconsciente que brota da profundeza do mar.
convém abrir um parêntese para avivar que o bahiano era já ciente também há seculum seculorum que por baixo do areal da praia de Itapuã escondiam-se camadas e camadas de ossos de baleias, cujos enormes peixes imemoriais navegavam pela orla térmica dos trópicos, em pulos colossais e a lançar jatos de água pelas ventas. seguindo depois em passeata marinha pras águas gélidas da Patagônia para dar à luz.
andei estupefacto por dentro de Moby Dick. antes olhara o olho aberto dela. um olho sem brilho, mas abertão. foram passos inusitados passando por intestinos, guelras, coração... até o rabo. o bicho por dentro do bicho. os oceanos e a Sé. a caminhada líquida. o adentramento na carne do templo. a baleia acena para o infinito. ponto
foto: cartaz da exposição
José Umberto é cineasta e escritor


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