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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Quando "espetáculo macabro" ocorreu em Feira de Santana

"Nem Lucas, o bandido famoso da Feira, 
era capaz de tamanha miséria"
Fotos: Reprodução/ "O Cruzeiro"/ Gervásio Batista

Em página no Facebook, o professor Carlos Brito, garimpeiro da memória feirense, lembrou de fato ocorrido em Feira de Santana há 66 anos, em 1951, que ganhou alcance nacional com publicação de reportagem na revista "O Cruzeiro". Há relatos que também foi noticiado na British Broadcasting Corporation (BBC), emissora pública de rádio e televisão do Reino Unido, sediada em Londres.
"Profanadores de túmulos" foi o título dado por Odorico Tavares, dos Diários Associados na Bahia. No lide: "Um espetáculo macabro levado a efeito na cidade de Feira de Santana, Bahia, por cinco rapazes que, se intitulando 'existencialistas', violaram diversas sepulturas e transformaram crânios humanos em taças de vinho."
Odorico Tavares (1912-1980), jornalista, escritor e poeta, era pernambucano e em 1942 radicou-se em Salvador, onde a convite de Assis Chateaubriand dirigiu as empresas do conglomerado Diários e Emissoras Associados, que na Bahia possuía os jornais "Diário de Notícias" e "Estado da Bahia", a Rádio Sociedade da Bahia e, mais tarde, a TV Itapoan. Fez diversas reportagens para a revista "O Cruzeiro" - como esta em pauta. 
O texto inicia com a citação do artigo 2328 do Código Canônico, que diz que "todo aquele que violar cadáver ou sepulcro com o fito de furto ou outro fim de caráter ilícito, seja punido com o interdito pessoal e seja, por esse fato, declarado infame, e sendo clérigo seja, além de penas acima referidas, deposto de suas funções".
"Pois é este artigo que a Cúria Arquidiocesana da Bahia invoca em aviso ao vigário geral de Feira de Santana, para que seja aplicado contra cinco jovens de famílias conhecidas naquele município. Eles violaram sepulcros para fins ilícitos e por isso serão declarados infames, serão afastados automaticamente da comunidade católica e não poderão receber sacramentos, entre eles o matrimônio, e nem têm direito de serem sepultados em cemitérios eclesiásticos."
Que fizeram eles?, questiona o jornalista. E relata que no sábado, 15 de setembro daquele ano, cinco jovens em Feira de Santana, "reuniram-se para a farra da semana e resolveram ir ao cemitério da Piedade. Segundo uns, declaravam-se existencialistas, tendo uma noção errônea da coisa: ser existencialista, para eles, é não levar complexos para casa, se há vontade para fazer que se faça, e, resolveram realizar a farra no cemitério. Para outros, já embriagados, os jovens resolveram homenagear um dos companheiros mortos e nada mais lógico do que as libações ao próprio túmulo do companheiro. O certo é que foram ao cemitério, lá entraram, violaram cerca de quinze sepulturas, quebrando as lajes mortuárias, abrindo os caixões, fazendo libações constatadas com as garrafas e os copos que encontraram junto das campas. Uma farra sinistra e que faria tremer os heróis do romantismo. Os manes de Alvares de Azevedo se levantaram sinistramente para assistir à lúgubre cena destes jovens de uma pacata cidade sertaneja, onde os costumes cristãos são rigorosamente mantidos, dentro de rígidos critérios. Ninguém os viu entrar e ninguém os viu sair. Mas saíram conduzindo cinco caveiras, quatro delas deixadas embrulhadas num pano, no jardim público. Com a quinta, demandaram ao Cassino Irajá, de Oscar Tabaréu (Oscar Marques), na zona do meretrício. E os presentes, já madrugada alta, tiveram, uns horrorizados e outros entusiasmados com a cena, de assistir aos jovens embriagados inteiramente, a lavar a caveira em vinho e aguardente e, em seguida, cada um deles tomar a sua bebedeira na mesma, que servia de copo. Houve protestos, mas a maioria dos presentes se entusiasmou com a coisa: que todos bebessem na própria caveira e fazendo em seguida dos orifícios oculares cinzeiros, porta-cigarros e nem sabemos que mais."
Quatro caveiras
Narra mais: "Pela manhã, já a notícia corria pela cidade. Foram encontradas as quatro caveiras no jardim público e o provedor da Santa Casa de Misericórdia comprovando a violação dos túmulos levou o fato ao conhecimento do delegado de Polícia, tenente Heitor de Sena Gomes. Este foi pessoalmente ao cemitério e constatou a monstruosidade: lápides partidas, ossadas expostas, pedras tumulares derrubadas, um atentados dos mais sinistros e dos mais monstruosos. 'Nem Lucas, o bandido famoso da Feira, era capaz de tamanha miséria', disse mais de um feirense, na sua indignação. O dono do cabaré foi à polícia e entregou o crânio, ao mesmo tempo que denunciava os rapazes responsáveis pela profanação. Estes já haviam fugido e as diligências policiais para os prender têm sido, até hoje, infrutíferas. Se as famílias estão receosas da represália contra semelhante profanação, há pais indignados". Um deles declarou ao repórter associados: "Se souber onde esteja meu filho o entregarei à Polícia".
"Se o direito canônico atinge os profanadores com a excomunhão, também o direito penal não o faz por menos. Tanto que, concluídas as diligências e o inquérito, a polícia solicitou a prisão preventiva para os criminosos, que foi decretada incontinenti pelo juiz de Direito Dr. Cândido Colombo de Cerqueira, que na sua sentença diz:
'A prova material do delito está nos autos, está no conhecimento da população. Quem sejam os autores do atentado, no-lo dizem as testemunhas ouvidas, o público os aponta. Eles próprios, abandonando o distrito da culpa, denunciam o seu crime, demonstram a consciência de terem agido contra os deveres culturais, sabido que é ser a transgressão da norma penal, antes de mais nada, a transgressão das normas culturais. Ora, se os incriminados, foragindo, denunciam o sentimento de culpa, demonstram, por outro lado, a consciência da vontade. Se não tivessem agido com a colaboração da vontade, a estas horas não estariam arrependidos, mordidos pelo remorso, espavoridos. Os indiciados, pela influência que podem exercer sobre o ânimo das testemunhas, se em liberdade, prejudicarão a instrução criminal e a apuração dos fatos em seus pormenores. Condenados, estaria assegurada de antemão a aplicação da lei penal. E não é só. A custódia preventiva representa, também, uma garantia da ordem pública, a prevenção contra outros delitos, porquanto, tal é a revolta da população, que não seria difícil um atentado à vida de qualquer dos indiciados. A pena cominada na lei é de reclusão e o 'delito é inafiançável'. Estão, assim, preenchidos os requisitos legais para a concessão da medida".
A reportagem prossegue: "Dos mausoléus profanados somente os de Nolenita Gofinho, Aníbel Azevedo, João Jônatas Muniz Moscoso, Honorato José dos Santos e Pedro Carneiro tiveram os ossos retirados e as caveiras lavadas para a farra sinistra. Os outros, embora com as lousas arrebentadas, não tiveram os restos mortais profanados e são os de Ortência Santos, David Saback, Jesuíno da Silva Lima, Miguel Ribeiro de Oliveira, Bernardino Barreiro, Álvaro da Silva Lima, Ladislau Alves Cordeiro, Manuel Antas Parcero, Honorato Alves Caribé e Vicência de Lima e Silva."
E finaliza: "A população de Feira de Santana aguarda confiante a prisão dos profanadores foragidos. 'Não é possível que Feira de Santana passe à história como cenário de tão lamentável acontecimento e estes moços fiquem impunes', dizia-nos um velho morador daquela próspera cidade. 'Basta Lucas da Feira, o grande bandido'."

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