A MORTE DA CIVILIZAÇÃO
Os terroristas do Isis atacaram um museu no Iraque. Para eles,
assassinar pessoas e destruir culturas serve ao mesmo propósito
Por Paula
Pauli
Ao
conquistarem a França e a Bélgica durante a II
Guerra, os nazistas saquearam as obras de arte de famílias ricas, museus,
palácios e igrejas. Quadros e objetos variados foram fotografados, catalogados
e depois guardados em minas de sal com desumidificadores para que não sofressem
com os bombardeios. As obras-primas preferidas por Adolf Hitler seriam expostas
após a guerra em um museu na Áustria, seu país natal.
Os
terroristas do Estado Islâmico, grupo que desde o ano passado ocupa vastas
áreas da Síria e do Iraque, são de uma linha diferente de genocidas.
Na semana passada, quebraram a marretadas inúmeras peças do Museu de
Mosul, no Iraque. Em um sítio arqueológico nos arredores da cidade,
destruíram com furadeira estátuas de touros alados e com cabeça humana que
guardavam as portas da cidade de Nínive, na antiga Assíria, entre o
século IX a.C. e o VII a.C.
O touro
alado de Mosul, na foto acima,
era uma divindade que, na crença dos povos babilônicos, protegia as cidades de
forças demoníacas. Enquanto os nazistas queriam substituir
uma civilização por outra, o Estado Islâmico almeja expurgar qualquer
vestígio civilizatório.
Na
ideologia desse grupo, que tem um inegável aspecto religioso, devem-se
seguir à risca os passos e as palavras de Maomé, que viveu nos
séculos VI e VII. Na alucinante justificativa do militante que aparece no
vídeo da destruição divulgado na internet, na quinta-feira passada,
"o profeta nos ordenou que nos livrássemos de todas as estátuas e
relíquias, e seus companheiros fizeram o mesmo quando conquistaram países
depois dele".
Segundo
os fundamentalistas, não deve haver nenhum objeto que sirva de culto, mesmo
sendo esse de uma sociedade extinta há milênios. O raciocínio é o mesmo usado
pelo Talibã, que em 2001 destruiu com dinamite e mísseis duas magníficas e
enormes estátuas de Buda em Bamiyan, no Afeganistão. O que
vem a seguir, de acordo com os membros do Estado Islâmico, é uma
guerra contra "Roma".
Na falta
de um papa com um exército, a palavra poderia ser interpretada como
sendo a Turquia, os Estados Unidos
ou a Europa. A vitória islamista nesta guerra, que,
segundo a propaganda religiosa feita pelo Isis na internet,
acontecerá em uma cidade perto de Aleppo, na Síria, dará
início à contagem regressiva para o fim do mundo. Dar início ao
apocalipse - esse é o objetivo do Estado Islâmico, e não a construção
de uma nova sociedade. Daí a investida sem tréguas contra
qualquer civilização, antiga ou moderna.
O
vídeo da destruição no museu tem apenas cinco minutos, mas parece
durar mais. Ao vê-lo, a reação mais comum é de aflição, incômodo.
"Em muitas pessoas, as cenas de destruição no museu provocaram uma
sensação parecida com aquela gerada pelos filmes de decapitação. Isso
é a prova do simbolismo forte que a cultura tem para todos
nós", diz o pesquisador de antiguidades americano Charles
Jones, da Universidade Penn State. Ele completa: "Para os
habitantes que tiveram de fugir de Mosul, a sensação de desamparo é
ainda maior".
Um alento
para quem se chocou com as cenas em Mosul está na ignorância dos terroristas.
As primeiras estátuas jogadas ao chão pela turba do museu não eram originais,
mas réplicas de gesso. Leves, caíram vagarosamente no chão. Algumas até
acabaram expondo as barras de metal que lhes davam estrutura.
Depois da invasão americana do Iraque em 2003, organizações
internacionais decidiram levar os originais para lugares seguros, entre eles o
Museu Britânico, em Londres.
Infelizmente,
não foi isso que aconteceu com os touros alados de Nínive, pesados demais.
Outras peças haviam sido saqueadas previamente para ser vendidas no mercado
negro de arte.
O que
espanta ainda mais é que ações desse tipo não são perpetradas por uma tribo
distante que só agora tomou conhecimento do que é uma sociedade desenvolvida.
Mais de 20 000 estrangeiros (que não são sírios ou iraquianos) já se juntaram
às fileiras do Estado Islâmico. Os que foram criados em nações ricas são os que
mais carregam consigo o ímpeto de destruir qualquer
referência à modernidade e a outras culturas.
Entre os
terroristas vindos da Europa está um homem que foi apelidado de John
Jihadista. Com roupas negras e balaclava cobrindo o rosto, ele aparecia com
frequência falando com sotaque inglês nos vídeos do Estado Islâmico. Neles,
John Jihadista cortou a cabeça de jornalistas e agentes humanitários.
Na semana
passada, sua identidade foi revelada. Seu nome é Mohammed Emwazi. Nascido no
Kuwait, ele cresceu em Londres. Formou-se em ciências da computação
pela Universidade Westminster e sonhava em integrar a milícia
islâmica Al Shabab, na Somália, filiada à Al Qaeda. Em uma
viagem à Tanzânia, foi detido e deportado
para a Inglaterra. Em 2012, viajou para a Síria e se juntou
ao Estado Islâmico. Com mais dois ingleses, tomava conta dos reféns do grupo. O
trio era chamado de "The Beatles" pelos próprios terroristas.
Publicado na edição impressa de VEJA
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