Por Josias Pires
Travei contato com a obra de Juraci
Dórea na década de 1980 e, desde sempre, aprendi a admirar a pesquisa artística
instigante deste criador, o primeiro (e até agora o único) a levar o Sertão da
Bahia para a Bienal de Veneza (1988) e outras exposições internacionais.
Escrevi algumas reportagens em revistas e jornais sobre facetas diversas da sua
obra. Pude travar contatos mais próximos com Dórea no período que residi e fiz
jornalismo em Feira de Santana, sua cidade natal.
Logo que soube louvei a iniciativa do
cineasta Tuna Espinheira em fazer um documentário sobre Juraci Dórea. Foi
movido de enorme curiosidade que assisti ao filme "O Imaginário de Juraci
Dórea no Sertão: Veredas", exibido em avant-première no dia 17 de dezembro de
2013. Bem impressionado com o resultado, resolvi escrever um texto com as
minhas primeiras impressões. Antes de publicar o texto fiz uma primeira versão
que continha algumas imprecisões. Enviei o rabisco para Juraci Dórea, que fez
alguns "esclarecimentos técnicos" incorporados ao texto publicado no Caderno de
Cinema. Contudo, faltou incorporar um dos principais esclarecimentos feitos
pelo artista, o que faço agora.
No começo do filme, alguns moradores do
povoado de Acaru, distrito de Monte Santo, travam uma discussão acerca do lugar
exato da velha casa da fazenda que - soube depois pelo próprio Juraci Dórea - ficava (provavelmente) na rota das tropas do Exército que se deslocaram de
Monte Santo em direção a Canudos no final do século XIX.
É uma sequencia desconcertante do filme
pois evidencia, de modo cômico, as armadilhas da memória. As dificuldades da
memória em fornecer referencias precisas sobre fatos e objetos do passado. As
dúvidas daqueles roceiros acerca do exato local da antiga casa que ali existiu
funcionam como uma espécie de contraponto ao restante do documentário, que
reitera o fato da obra artística de Juraci Dórea inscrever-se fortemente no
campo da memória.
Leiam o que esclarece Dórea sobre o
povoado do Acaru baseando-se em Euclides da Cunha: "Em Os Sertões o Acaru
aparece nos mapas, próximo à serra do Acaru, e é citado no início da parte
intitulada "A luta": "Travessia do Cambaio". O subtítulo é "Em marcha para
Canudos", que diz o seguinte:
"Transcorridos alguns quilômetros (o
Acaru fica a 20km de Monte Santo), porém, acidenta-se (a estrada); perturba-se
em trilhas pedregosas e torna-se menos praticável à medida que se avizinha do
sopé da serra do Acaru. [...]". Continua Juraci:
"O Acaru tem hoje poucas casas. Quando
conheci, tinha quatro ou cinco apenas, e uma escola. Na época da Guerra,
provavelmente, a casa da fazenda era seguramente a principal referência do
lugar, chegando a constar do mapa de Euclides".
O registro feito por Euclides, como
fica evidente, é o único modo que temos de superar e/ou contrapor-se de modo
medianamente consistente, neste caso, às imprecisões das lembranças humanas.
Esta informação é decisiva para comprovar a tese aqui enunciada: a memória
permanece com alguma fidelidade ao real quando pode ser fixada em algum modo de
registro. Neste sentido, em última análise, a obra de Juraci Dórea inscreve-se
no mesmo sentido alcançado pelo registro de Euclides da Cunha, ou seja, a busca
em fixar memórias de uma cultura/sociedade ameaçada.
Juraci Dórea - O próprio
artista-personagem do filme diz buscar no sertão mais recuado referencias
culturais que foram perdidas na sua cidade natal, a quase metrópole Feira de
Santana. Nesta busca, a sua pintura fixa em suportes variados - couro, madeira,
tela - elementos típicos do mundo sertanejo. Naturalmente aquele é um mundo que
também se transforma. Mas o que interessa ao artista não é documentar ou
refletir sobre tais processos de transformação. A sua intenção, poderíamos
dizer, é escapar da fragilidade da memória e, para além das mudanças, fixar nos
quadros as histórias do sertão por meio de elementos característicos lançando
mão de uma forma que dialoga fortemente com imagens de xilogravuras.
Contudo, talvez ainda mais importante
do que fixar aqueles elementos em quadros pintados, merece destaque outro dado
inovador - e profundamente generoso - da obra deste artista: expor as pinturas
nas feiras e mercados das cidades da região, fazendo interagir as telas
diretamente com os roceiros e vaqueiros. Neste gesto inovador, Juraci Dórea
recusa os museus e galerias das grandes cidades e propõe criar museus a céu
aberto nas cidades das caatingas. Ao mesmo tempo tudo isto é meticulosamente
fotografado e as imagens daqueles encontros são levadas para os museus e
galerias das metrópoles. Neste registro a obra vai além das pinturas, pois os
próprios homens e mulheres sertanejos - com suas indumentárias, gestos etc - tornam-se referenciais. O registro fixa a memória. A memória permanece pelo
registro e não apenas como lembranças humanas fugazes.
Lembranças fugazes como aquelas
registradas pela câmera super-8 do fotógrafo Robinson Roberto que acompanhou
Dórea numa das suas viagens pelos sertões, exatamente para o povoado do Acaru,
onde foi levantada uma das esculturas abstratas de couro e madeira - figuras
fantásticas que dialogam com as paisagens sertanejas. Nesta viagem Robinson
Roberto gravou a fala de uma personagem quase lendária, a Edwirges, de Monte
Santo - figurante do filme Deus e Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha,
Edwirges lembra confusamente nomes de atores e atrizes que teriam atuado no
filme, em mais uma demonstração de como a memória é imprecisa, ainda que
impressionante, apaixonante, desconcertante.
Mas Juraci Dórea vai além da imprecisão
da memória. Saindo dos quadros para as instalações, embrenha-se nos sertões
para levantar as esculturas abstratas de couro e madeira em locais inóspitos.
Como afirma o poeta Antonio Brasileiro, com estas obras Dórea institui uma nova
visualidade sertaneja. Juraci Dórea cria / inventa a partir de procedimentos
imemoriais. Rompendo de modo radical com o imaginário e/ou figuração típica do
sertão - porém inspirado em procedimentos nativos de espichar o couro retirado
de animais - as esculturas impactam fortemente a imaginação do homem rural e,
registradas pelas fotografias do próprio artista, chamam a atenção do mundo
ilustrado das artes, das bienais internacionais e da crítica bem informada.
Em meio à impermanência da memória, à
fugacidade de todas as coisas, as esculturas de couro e madeira constituem
obras efêmeras, que são reconstruídas e, por fim, destruídas pelo tempo. O
tempo que apaga e reconstrói as memórias, remodela e transforma tudo o que
existe. Tuna Espinheira trouxe do sertão da Bahia uma joia rara: o imaginário
de Juraci Dórea. Parabéns, mestre!
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