Por Marco Antonio Villa
A lembrança dos 50 anos da
queda de João Goulart ocupou amplo espaço na imprensa. Nenhum outro
acontecimento da história do Brasil foi tão debatido meio século depois do ocorrido.
Para um otimista, isto poderia representar um bom sinal. Afinal, o nosso país
tem uma estranha característica de esquecer o que ocorreu ontem. Porém, a
reflexão e o debate sobre 1964 e o regime militar acabaram sendo dominados
justamente por aqueles que conduziram o país à crise da república populista e
que negaram os valores democráticos nos anos 1960-1970.
A
tendência à hagiografia mais uma vez esteve presente. João Goulart foi
transformado em um presidente reformista, defensor dos valores democráticos e
administrador capaz. Curiosamente, quando esta narrativa é cotejada com relatos
de assessores, como o ministro Celso Furtado, ou de um amigo, como o jornalista
Samuel Wainer, cai por terra. Furtado, em entrevista à revista Playboy (abril, 1999) disse que Jango "era um primitivo, um pobre de caráter". Wainer relatou que "uma vez por mês,
ou a cada dois meses, eu visitava os empreiteiros e recolhia suas doações,
juntando montes de cédulas que encaminhava às mãos de João Goulart. (…) Eu
poderia ter ficado multimilionário entre 1962 e 1964. Não fiquei." (Minha Razão de Viver, p. 238).
Não é possível ignorar o
caos instalado no país em março de 1964. A quebra da hierarquia militar
incentivada pelo presidente da República é sabidamente conhecida. A gravidade
da crise econômica e a inépcia governamental em encontrar um caminho que
retomasse o crescimento eram mais que evidentes. O desinteresse de Jango de
buscar uma solução negociada para o impasse não pode ser contestado: é fato. O
apego às vazias palavras de ordem como um meio de ocultar a incompetência
político-administrativa era conhecido. Conta o senador Amaral Peixoto,
presidente do Partido Social Democrático, que em conversa com Doutel de
Andrade, um janguista de carteirinha, este, quando perguntado sobre o projeto
de reforma agrária, riu e respondeu: "Mas o senhor acredita na reforma agrária
do Jango? No dia em que ele fizer a reforma agrária, o que vai fazer depois?" (Artes da Política, p.455)
Também causa estranheza a
mea culpa de alguns órgãos de imprensa sobre a posição tomada em 1964. A queda
de Jango deve ser entendida como mais um momento na história de um país com
tradição (infeliz) de intervenções militares para solucionar crises políticas.
Nos 40 anos anteriores, o Brasil tinha passado por diversas movimentações e
golpes civis-militares. Basta recordar 1922, 1924, Coluna Prestes, 1930, 1932,
1935, 1937, 1938, 1945, 1954, 1955 - tivemos três presidentes da República e
dois golpes no mês de novembro - e 1961.
Jogar a cartada militar
fazia parte da política. E nunca tinha ocorrido uma intervenção militar de
longa duração. Esperava-se um governo de transição que garantisse as eleições
de 3 de outubro de 1965 e a posse do eleito em 31 de janeiro de 1966. Esta
leitura foi feita por JK - e também por Carlos Lacerda. Os dois principais
antagonistas da eleição que não houve imaginavam que Castello Branco cumpriria
o compromisso assumido quando de sua posse: terminar o mandato presidencial
iniciado a 31 de janeiro de 1961.
JK imaginou que Castello
Branco era o marechal Lott e que 1964 era a repetição - um pouco mais agudizada - da crise de 1955. Errou feio. Mas não foi o único. Daí a necessidade de
separar 1964 do restante do regime militar. Muitos que foram favoráveis à
substituição de Jango logo se afastaram quando ficou patente a violação do
acordado com a cúpula militar. Associar o apoio ao que se imaginava como um
breve interregno militar com os desmandos do regime que durou duas décadas é
pura hipocrisia.
Ainda no terreno das
falácias, a rememoração da luta armada como instrumento de combate e vitória
contra o regime foi patética. Nada mais falso. Nenhum daqueles grupos - alguns
com duas dúzias de militantes - defendeu em momento algum o regime democrático.
Todos - sem exceção - eram adeptos da ditadura do proletariado. A única
divergência é se o Brasil seguiria o modelo cubano ou chinês. Não há qualquer
referência às liberdades democráticas - isto, evidentemente, não justifica o
terrorismo de Estado.
A ação destes grupos os
aproximaram dos militares. Ambos entendiam a política como guerra ─ portanto,
não era política. O convencimento, o respeito à diversidade, a alternância no
governo eram considerados meras bijuterias. O poder era produto do fuzil e não
das urnas. O que valia era a ação, a força, a violência, e não o discurso, o
debate. Garrastazu Médici era, politicamente falando, irmão xifópago de Carlos
Marighella. Os extremos tinham o mesmo desprezo pelo voto popular. Quando
ouviam falar em democracia, tinham vontade de sacar os revólveres ou acionar os
aparelhos de tortura.
Em mais de um mês não li ou
ouvi qualquer pedido de desculpas públicas por parte de ex-militantes da luta
armada. Pelo contrário, se autoproclamaram os responsáveis pelo fim do regime
militar. Ou seja, foram derrotados e acabaram vencedores. Os policiais da
verdade querem a todo custo apagar o papel heroico da resistência democrática.
Ignoraram os valorosos parlamentares do MDB. Alguém falou em Lysâneas Maciel?
Foi ao menos citado o senador Paulo Brossard? E a Igreja Católica? E os
intelectuais, jornalistas e artistas? E o movimento estudantil? E os
sindicatos?
Em um país com uma terrível
herança autoritária, perdemos mais uma vez a oportunidade de discutir a
importância dos valores democráticos
Nenhum comentário:
Postar um comentário