Por André Setaro
Barravento, primeiro longa metragem de Glauber Rocha, apesar de
somente lançado em 1962, começa a ser produzido em 1959. Sobre ser um filme do
maior cineasta brasileiro de todos os tempos, Barravento se
estabelece mais além na sua importância, pois se enquadra como um dos
propulsores do importantíssimo – e quase esquecido pela ausência de memória
característica dos brasileiros e, particularmente, dos baianos - Ciclo Baiano
de Cinema, que eclodiu com Redenção (1956/1959), de
Roberto Pires, o primeiro filme de longa duração feito na Bahia, que transforma
a cidade de Salvador numa efervescência cinematográfica nunca vista, quando se
tenta criar uma infra-estrutura capaz de dar prosseguimento, aqui, a um cinema
característico da baianidade e dotado de acentos universalistas. Assim, com a
aparição de Redenção, várias pessoas acreditam na real
possibilidade de se fazer cinema nestas plagas, como Rex Schindler, Braga Neto,
Winston Carvalho, Palma Netto, David Singer, principalmente o primeiro, que
tiraram dinheiro do bolso para produzir filmes como Barravento,
A Grande Feira (1961), Tocaia no Asfalto
(1962) - ambos de Pires, O Caipora (1963), de Oscar Santana, Sol
Sobre a Lama (1964), de Palma Netto e Alex Viany, O Grito da
Terra (1964), de Olney São Paulo, obras genuinamente baianas e
bancadas com capital de empresários locais. A febre, porém, tal
qual um imã, atrai produtores do sul e até estrangeiros - para ficar num só
exemplo: O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte,
produzido pelo paulista Oswaldo Massaini e que ganha a Palma de Ouro no
Festival de Cannes - é bom que se diga que este é o único filme brasileiro a
conquistar a tão cobiçada palma de melhor filme do Croisette.
A efervescência
que toma conta da cidade se liga a um momento particular das artes baianas,
que, por sua vez, se vincula ao espírito da época, configurando
o que Antonio Risério chamou de a avant-garde na Bahia em ensaio do
mesmo nome publicado pela Corrupio. A província, nesta época, tem um singular
desenvolvimento: faz-se um teatro da melhor qualidade na Escola da Ufba do
Canela, com Martim Gonçalves à frente, formando toda uma geração de intérpretes
qualificados em encenações que despertam interesse de pessoas do eixo Rio-São
Paulo (e até de Nova York); Lina Bo Bard revoluciona, com a criação do Museu de
Arte Moderna, com seus traços modernos e dissonantes; Roelrreutter, Ernest
Widmer, entre outros, desconcertam as tonalidades acadêmicas do Seminário de
Música; os suplementos culturais agitam, com textos críticos e escritos
literários; o Clube de Cinema da Bahia, liderado por Walter da Silveira,
informa e forma uma platéia de interessados, fazendo-os ver e compreender a
arte do filme, entre eles, Glauber Rocha, atento e assíduo. O Brasil cresce e
parece ser o país do futuro com o desenvolvimentismo de JK - o mundo ainda não
está a se acabar, como agora, com a quebradeira geral internacional e a
falência do neoliberalismo perverso.
Barravento tem gestação difícil. Começa a ser filmado em 1959
por Luis Paulino dos Santos que, apaixonado pela atriz principal, Sonia
Pereira, atrasa o cronograma porque ficava apenas fazendo planos demorados de
sua amada. Glauber Rocha, que faz parte da equipe, com o consentimento do
produtor, Rex Schindler, dá um golpe, demitindo Paulino e assumindo o controle
total das filmagens. Reescreve o roteiro com José Telles de Magalhães, e
termina um filme que se arrasta indefinido. Pronto o copião, o início da
rodagem - pelo mesmo grupo de A Grande Feira determina a
paralisação dos trabalhos de pós-produção e, somente em 1961, com o término da
fita sobre a feira de Água de Meninos, Glauber, com Barravento
debaixo do braço, leva-o ao Rio para ser montado, pedindo ajuda para isso a
Nelson Pereira dos Santos, que, seguindo as orientações glauberianas, monta-o
para que, no ano seguinte, possa ser lançado. Assim, três anos (de 1959 a 1962)
tortuosos e necessários para Barravento vir à luz, tornar-se realidade
na tela luminosa. Também a sua construção, que não obedece a uma intensidade
dramática padrão, dificulta a articulação na montagem, que a afoiteza
glauberiana queria numa composição de plástica da imagem à maneira de um
Eisenstein.
O golpe, em cima
de Luis Paulino dos Santos, segundo Rex Schindler, produtor do filme, não pode
ser considerado assim. Mas o que explica a demissão sumária de Paulino, que é
afastado do filme, e substituído por Glauber Rocha? Este e Paulino, apesar de
amigos, têm diferentes visões do mundo e da vida. Schindler diz que Glauber, na
época, imbuído pelas leituras de Marx e Engels, e a considerar o termo barravento
como algo que muda, algo que transforma, quer que o filme proponha uma
resolução de mudança social, ao passo que Paulino propõe uma mudança mística. A
versão do produtor é de que há, no affair, uma questão ideológica.
Paulino, que atualmente vive em comunidade, a abdicar do convívio numa
sociedade de consumo, pensa Barravento como uma proposta de
contemplação de uma cultura, a cultura negra do candomblé e a beleza de suas
manifestações. Glauber, que primeiro surge como diretor artístico, insurge-se
contra a passividade imposta ao barravento querido por Paulino e tenta
mudar-lhe os rumos ficcionais. Afasta o amigo da direção no que se constitui,
apesar dos desmentidos e da lenda que se forma em torno da produção, um
verdadeiro golpe. Mas para dar o golpe não teria tido o apoio do produtor
Schindler? A história, ainda muito mal contada, precisa ser desvendada. A
fulgurante ascensão de Glauber como diretor cinematográfico faz esquecer os
qüiproquós do passado. E ninguém fala mais nisso. Ponto final. Mas este ponto
precisa, a bem da História do Cinema Baiano, ser bem desvendado e explicado.
Apesar de algumas
tentativas de incluir conceitos de Sergei Eisenstein e da sua montagem
ideológica, Barravento pode ser considerado um rascunho do que
viria a seguir, uma promessa de um cineasta, que veio a traumatizar duramente o
cinema brasileiro com Deus e o Diabo na
Terra do Sol (1964), uma indiscutível obra-prima. Tem sua importância
dentro de um momento histórico, por ser a primeira obra de Glauber e por
refletir a mentalidade de uma época em relação ao misticismo dos pescadores
negros da praia de Buraquinho. O argumento é bem simples: numa vila de
pescadores, a única rede pertence a um explorador, mas a comunidade não se
revolta, postando-se passiva diante da opressão. A chegada de Firmino (Antonio
Pitanga), vindo da cidade grande, onde se conscientizara politicamente, cheio de
idéias revolucionárias, vai se chocar com o pensamento de Aruã (Aldo Teixeira),
o favorito da deusa Iemanjá. Para libertar o povo, Firmino tem que destruir a
credibilidade de Aruã frente aos pescadores, o que consegue no final.
Desmitificar Aruã significa possibilitar aos pescadores a conscientização e a
revolta. A religião, seja ela qual for, para o Glauber da época, é puro ópio do
povo. O negro moderno e urbanizado derrota o negro semi-tribal e mais próximo
das raízes africanas.
Neste ponto de
vista, um filme preconceituoso, mas muito característico da mentalidade dos
intelectuais da época. Mentalidade que seria reformulada pelo próprio Glauber
em filmes posteriores - notadamente A Idade da Terra - e por
Nelson Pereira dos Santos em O Amuleto de Ogum,
onde o cineasta, respeitando as crendices do povo, conta a história sem tomar
partido e assumir, como fez Glauber em Barravento, uma atitude
paternalista com acentos revolucionários.
No elenco, além
dos citados, a beleza negra de Luiza Maranhão - que desapareceu sem deixar
vestígios, contando a lenda que se casou com um milionário europeu e largou o
cinema, Lucy Carvalho, e Lídio Cirillo dos Santos - que viria a incorporar o
beato Sebastião em Deus e o Diabo na Terra do Sol.
O restaurante e
bar Barravento, na Avenida Oceânica, perto do Morro do Cristo,
tem esse nome por causa do filme de Glauber.
* André Setaro
- Especial para o Caderno de Cinema
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