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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Esperando o terceiro ciclo baiano

Por Raul Moreira
Chama à atenção, justamente quando muitos acreditam no maturar de um novo ciclo de cinema na Bahia, a forma através da qual os que supostamente o fazem comportam-se diante do fato. Falo isso porque, na semana passada, a providência me fez acompanhar, através da rede, uma discussão em torno dos critérios para se afirmar se um determinado filme é "baiano" ou, tão somente, "rodado na terra da felicidade". A lebre, no caso, foi levantada porque há planos para se realizar no próximo verão uma mostra retratando o cinema made in Bahia produzido nos últimos 10 anos.
Cá, digo-lhes que tenho mais prazer em falar da ausência de autocrítica entre os artífices do dito "novo cinema baiano" do que propriamente tentar entender se se trata de Chico ou de Francisco. Sim, porque, infelizmente, talvez por vício, incapacidade ou, quem sabe, pela penúria que foi "chegar lá", nossos realizadores mostram-se superficiais ao avaliar os desdobramentos de uma aventura empreendida por eles mesmos.
Em outras palavras: quis o destino que a tal da maturação não corroborasse para um engrandecimento mínimo da mentalidade e da forma de pensar do estabelechiment do cinema baiano. E, partindo-se de tal pressuposto, é impossível não por em cheque a representatividade e a força do segundo ciclo.
Segundo ciclo que, se formos datá-lo, começa no início do século 21, com o longa 3 histórias da Bahia, mas que, na verdade, teve a sua base na geração super 8, três décadas antes. Para efeito de registro, boa parte dessa mesma turma que hoje sente o gosto de realizar filmes com mais de 50 minutos em formato 35 mm, galgou os degraus das bitolas, algo notável, até porque, naqueles tempos, mediante todas as dificuldades do retrocesso, o aventurar-se no audiovisual era tarefa árdua e para poucos obstinados.
Eram, então, jovens pretensos cineastas em busca de expressão, numa terra que começava a se transformar, perdendo o encanto e a força registrados nos anos 50, 60 e parte dos 70, período no qual, por conta de algumas ações pontuais implantadas por bem-intencionados homens de cultura locais e alguns estrangeiros que cá aportaram, dela brotou algo de novo e salutar: a fusão de uma nova engrenagem cultural - pelo menos para os parâmetros da Bahia na época - com um encorpado mofo secular resultou em um processo sui generis, uma mistura que só poderia dar certo, claro, a partir do encontro de certa tradição com a modernidade.
Mas foram-se os tempos de Anísio Teixeira, de Edgard Santos, de Walter da Silveira, de Martim Gonçalves, de Lina Bo Bardi, de Roberto Pires, de Pierre Verger, de Jorge Amado, de Walter Smetak, dos grandes artistas plásticos e tapeceiros, muitos dos quais estrangeiros abaianados, dos "malucos" baianos da Tropicália, de Glauber Rocha, de Raul Seixas, enfim, de uma gente pulsante que aflorou na hora certa e no lugar certo, deixando um legado que no final tornou-se uma maldição, principalmente quando nos deparamos com o desastre da atual cena cultural.
Vieram, então, os anos perdidos, que começaram com o lento processo de distensão da ditadura e alcançaram o final da década de 80, período no qual deu-se a primeira eleição direta para presidente após um longo período de obscurantismo. Paralelamente, Salvador ganhava novos contornos com a implantação do Polo Petroquímico de Camaçari e com a ampliação e modernização de sua estrutura urbana, transformações que deram-se acompanhadas de um grande inchaço populacional, algo que, por tabela, conferiu um caráter ainda mais miserável à capital baiana.
INSTRUMENTO - Para completar, a falência do governo de centro-esquerda no final da década de 80 acabou dando substratos para a afirmação de um poder de centro-direita organizado e truculento, batizado de "carlismo". Coincidentemente, na época surgiu um movimento que rapidamente ganhou corpo e alastrou-se pelas suas entranhas. O instrumento era a música, claro, talvez o bem mais precioso de uma terra dominada pela cultura do ritmo. No entanto, a onda que deveria corroborar com certa independência na relação entre dominados e dominadores fez água. O que se viu foi o proliferar de uma indústria musical estética e ideologicamente dúbia, tornando ainda mais frágil a condição de subserviência dos oprimidos e fortalecendo a emergente oligarquia, pois ela soube tirar proveito da situação e acabou incorporando para si o suposto êxito do movimento: estava instaurada o "império pélvico" na Bahia, combatido, cinematograficamente, com "SuperOutro", de Edgard Navarro, média que na época nos deu a esperança de que nem tudo estava perdido.
Veio, então, a transição dos anos 90, repleto de um desejo de retomada por parte da gente que aspirava fazer "cinema grande", o que só foi possível, independentemente das utopias, graças a um certo know-how que os pretensos cineastas adquiriram quando da atuação na área publicitária, experiência que minimamente formou técnicos, roteiristas e diretores.
Por tabela, por conta da estabilização da moeda e do ressurgimento do cinema brasileiro através de ações do Estado, que começou a bancá-lo em toda a sua cadeia produtiva, através dos editais e das leis de renúncia fiscal, timidamente, os nossos baianos da Sétima Arte resolveram se aventurar na empreitada de fazer filmes, mesmo.
E, aos trancos e barrancos, surgiu na virada do século 21 o "carnavalesco" "3 Histórias da Bahia", conturbada produção financiada pelo dinheiro público que constituía-se da junção de três curtas unidos em torno de uma temática aparentemente comum. No entanto, uma percepção mais sóbria do que viria só se deu a partir de "Cascalho", de Tuna Espinheira, de "Esses Moços", de José Araripe Jr., de "Eu Me Lembro", de Edgard Navarro, e de "Pau Brasil", de Fernando Beléns, lançados respectivamente num espaço intervalado de seis anos, entre 2004 e 2010
Daí, sim, emoldurou-se a amálgama e as diretrizes encampadas por um grupo de cineastas que finalmente conseguiu concretizar seus longas. Curioso, para não falar em sintomático, é que os tais refugiram-se na memória e em territórios distantes de seus cotidianos, como se negassem a realidade mais objetiva, ou pelo menos, quem sabe, não se sentiam capacitados para enfrentá-la, para desnudá-la.
Vale salientar que, se não fosse o êxito de Navarro com o seu "Eu Me Lembro" no Festival de Brasília em 2005, levando uma série de Candango, entre eles o de Melhor Filme, o que mascarou a sua inépcia, o novo cinema baiano passaria batido, pelo menos enquanto força motriz. E, ao distanciaram-se do contemporâneo, nas suas misérias e belezas, tais cineastas, no final, acabaram perdendo o bonde, escapando pela tangente, ao contrário do que fizeram e fazem, por exemplo, os pernambucanos e a novos autores mineiros e paulistas, capazes de tocar na ferida de forma muita mais profunda, sem medos e não seguindo certos academicismos demodê adotados pelos colegas baianos.
AVESSO - Infelizmente, a tendência continua, como se configurou recentemente através de "O Homem Que Não Dormia", do mesmo Edgard Navarro, autor que, mais uma vez refugiou-se em seus castelos imaginários e produziu uma obra vigorosa, mas desprovida de sentido de urgência, perdendo-se em alegorismos. Contracorrente, Pola Ribeiro deu-se à realidade com o seu "Jardim das Folhas Sagradas", mas, infelizmente o fez de forma panfletária, maniqueísta ao avesso, didática, sem distanciamento, defeitos que no final acabaram por comprometer a força de um filme que amarrou sua âncora justamente na temática do "ser ou não ser", do livre arbítrio.
Ainda que muitos abram a boca para dizer que o segundo ciclo baiano vem gerando bons documentários, por conta de alguns prêmios em festivais importantes nos últimos anos, é impossível não deixar de reconhecer os pecados estruturais de obras como "Samba Riachão", de Jorge Alfredo, e "Filhos de João - O Admirável Mundo Novo Baiano", de Henrique Dantas. Aproveitaram-se, no Festival de Brasília e por onde passaram da simpatia e da força dos objetos retratados na sua relação quase simbiótica para com o público, algo que, por tabela, acabou influenciando a crítica. Sim, documentários do gênero começam a se transformar em fórmulas prontas, ainda que, a julgar pela frieza em torno da recepção a "Escutando Tom Zé", do mesmo Jorge Alfredo, nem sempre funciona.
Como não funcionou a fixação que alguns cineastas baianos do segundo ciclo em alimentar-se de elementos mistificados e mitificantes do sertão, notadamente o messianismo e o cangaço. Ao entrar em tal seara, por exemplo, José Walter Lima afundou com o seu "Conselheiro, o Taumaturgo dos Sertões", filme que já nasceu condenado por problemas de produção e, nem mesmo o enxerto de soluções "modernizantes", conseguiu dar-lhe um sentido. O mesmo caminho parece seguir o cineasta José Umberto, com "Revoada", uma imersão no mundo do cangaço que vem penando mais do que os anti-heróis de couro na busca da salvação.
O diabo é que os filmes os quais deram-se a explorar a tragédia da contemporaneidade em Salvador acabaram pecando por falta de consistência, coincidentemente ambos de autoria de jovens realizadores do segundo ciclo. O primeiro, "Trampolim do Forte", de João Rodrigo, é um filme de "plástico", sem a profundidade psicóloga necessária que o tema exigia; por sua vez, "Estranhos", de Paulo Alcântara, é um exercício malsucedido em praticamente todos os seus fundamentos, um caso que merece um estudo aprofundado.
Repetindo: não houve no segundo ciclo um filme que realmente marcasse, que nos fizesse exultar. Houve, sim, o lançar de confetes a partir dos prêmios conquistados em Brasília pelos baianos, triunfos que se deram mais por conta da reação nem sempre racional de plateias infantilizadas e as quais certamente influenciaram o júri do que propriamente pela força de uma cinematografia. E isso nos faz pensar que a importância de tais realizadores será medida, apenas, pela tenacidade a partir da qual conseguiram parir suas obras, em cenários muitas vezes hostis, adversos, dificuldades que vão desde os processos de produção à distribuição.
Não que o primeiro ciclo, que tem em Roberto Pires o seu grande artífice tenha sido referência de excelência, não. Isso porque, quando Glauber Rocha deslanchou com o Cinema Novo, a partir de "Barravento" e de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", ficou ainda mais evidente a fragilidade dos autores do primeiro ciclo baiano, verdadeiros heróis por começar do zero através de processos muitas vezes artesanais, mas, infelizmente, desprovidos de substancialidade, de uma uma linguagem que fugisse dos ditames acadêmicos.
Certo que os ditos realizadores do segundo ciclo não devem baixar a cabeça, até porque, verdade seja dita, fizeram o possível, dentro de suas limitações, alcançando, muitas vezes, resultados surpreendentes. No entanto, não podem, como não devem, viver da fantasia do autoengano de que alcançaram algo de grande, pois, assim, não haverá margem para o crescimento das novas gerações, as quais, merecem, sempre, viver em ambientes instigantes e onde o umbigo não represente mais do que a verdadeira expressão.
Nova geração ou terceiro ciclo que terá a responsabilidade de se diferenciar do primeiro e segundo ciclos baianos, pois, em tese, ao contrário de seus antecessores, certamente vão encontrar - e estão encontrado - diante de si caminhos menos atribulados, por conta das facilidades tecnológicas, de uma engrenagem azeitada, pois, queiram ou não, o cinema brasileiro ampliou-se e abriu novos horizontes.
Mas para tanto, a nova geração não pode se perder nas armadilhas da vaidade e muito menos na mediocridade da província, afundada na pasteurização de seu próprio imaginário, o que a tornou burra, feia, desprovida de expressão. Sim, a missão do terceiro ciclo será aquele de abrir caminhos em uma terra arrasada, em um trabalho que anuncia-se árduo, difícil e, por isso mesmo, carregado com a atmosfera justa que norteia os grandes desafios.
Fonte: "Setaro's Blog"

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