Por Vera Márcia Lopes Santos (*)
Seu Astério, 85 anos, lavrador, morador da localidade de Santa Quitéria, conta que, quando criança, conheceu uma mulher que foi amaldiçoada por Deus por ter batido na mãe, parindo assim uma criança de duas cabeças. Seu Silvero, 79 anos, servidor público aposentado, morador da cidade de Feira de Santana, também tem em sua memória casos dessa natureza. Ele disse que ajudou a perseguir um lobisomem na década de 40 que atacava mulheres para tomar seus pertences. Dona Bernadete, 75 anos, dona de casa e parteira, moradora no distrito de Humildes, disse que ajudou uma mãe a dar à luz uma criança que era meio bicho, por se assemelhar muito a um macaco. Ela conta que o susto que levou a impediu de realizar outros partos; e acha que essa criança não “vingou”. Ela não sabe dizer que destino a família deu à criança, sabe apenas que, anos mais tarde, a mãe, perseguida por pesadelos horripilantes, adquiriu uma doença “braba”, morrendo com o corpo todo “bichado”. Esse fato ela também testemunhou!
Esses relatos são exemplos de narrativas que se constroem a partir de memórias.Tais quais os romances dos escritores feirenses Fernando Ramos e Muniz Sodré, respectivamente: “O Lobisomem de Feira de Santana” (2002) e “O Bicho Que Chegou a Feira (1991). Em ambos os romances, o leitor é remetido à Feira dos anos 40 e 60, a um universo construído a partir de fatos reais e fictícios, permeados de literaralidade. É o cenário em que vivem o jovem Permínio e o mulato Antão, personagens nos quais se apóiam os focos narrativos dos romances. Através das suas memórias, Ramos e Sodré recontam a história de Feira, fornecendo um inventário de elementos diversos que formam as suas matrizes ideológicas, resgatando mitos e revelando as estruturas de sua origem sócio-cultural.
Diferente da posição do historiador que tem o compromisso de descrever a realidade ao relatar os fatos que constituem a história, a tradição literária isenta o autor da responsabilidade pela verdade contida ou não nos seus relatos. Para isso existe a figura do narrador, entidade abstrata à qual é atribuída uma autonomia absoluta na construção do enredo. O escritor português José Saramago, no ensaio “O Autor Como Narrador” (Cult, 1998), contesta essa tradição. Ele diz: “[...] a figura do narrador não existe [...] só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção.”. E justifica a assertiva alegando que a expressão de um pensamento inclui nele “os sentimentos, as sensações, as idéias e os sonhos, as vidências do mundo exterior e interior, sem os quais o pensamento se tornaria em puro pensar inoperante”.
O narrador onisciente adotado por Ramos utiliza o personagem Permínio como o elo entre os ambientes distintos, onde se instauram as intrigas. Permínio é o mediador dos conflitos, e é sob a lente dele que o leitor conhece a dimensão dos universos particulares de alguns personagens como o padre Amílcar Marques, expressão máxima da tirania exercida pela Igreja Católica que exerce temor e fascínio, graças à sua instrucional retórica barroca:
“Devotos, os bárbaros sempre espalharam o horror na Ásia, mas não sou historiador para descobrir-lhes a mentalidade aterradora. Sempre, no cair dos séculos, o insensível montou no sensível, os renegados montaram nos quietos, os velhos sofreram nas mãos dos moços. A humanidade viveu na contramão, torpedeando os livros, pouco arejado em guerra [...]” (p.55).
Utilizando uma linguagem referencial, o autor dá ao romance características jornalísticas; ricas, tanto na qualidade, quanto na quantidade de ambientes e personagens. As praças, o cassino de Oscar Tabaréu, o Colégio Santanópolis, lojas tradicionais e o Cine Santana ganham status de entidades vivas pela alegorização que sofrem.
“A casa de seu Lolô, espaçosa e agradável, interpelada numa rua desagradável e torta (rua Tertuliano Carneiro) vivia fechada durante oito meses do ano. [...] O quintal beirava a grandeza, com tamarindeiros em monólogo.” (p 40).
Saramago esclarece esse efeito: “[...] certos autores privilegiam, nas histórias que contam, não a história que vivem ou viveram, mas a história da sua própria memória [...]”. A personificação do quintal e do tamarindeiro supera qualquer intencionalidade descritiva, ela evidencia a impressão emotiva encravada na memória do autor. Ao relatar pequenas ocorrências, fatos curiosos, lembranças saborosas de sua juventude, o autor traça um quadro panorâmico da cidade ao mesmo tempo em que seduz o leitor e o convoca a partilhar de uma experiência particular e exclusiva, na qual a realidade assume, com relativa liberdade, as dimensões fantásticas inerentes ao universo humano.
O leitor vivencia a euforia provocada pela modernidade, configurada pelo advento do cinema, e pelas promessas de progresso pós-segunda guerra mundial; compartilha dos sentimentos ambíguos provocado pelo getulismo; passeia por ruas e ambientes tradicionais; convive com personalidades ilustres como Gastão Guimarães, Honorato Bonfim, Jorge Leal, Eurico Alves, dentre tantos outros que se constituem personagens históricos, além de conhecer personagens - fictícios ou não - que compõem os tipos sociais como a vidente Altamira, a intelectual Dulceleida, o vendedor Idrônico, o vagabundo Jair Capenga e a figura emblemática do lobisomem.
Num cenário marcado por tantos acontecimentos, não se pode minimizar os conflitos gerados a partir das questões religiosas. Era um momento em que a igreja protestante e o espiritismo kadercista ganhavam visibilidade e adeptos, e por isso sofriam ferrenhas e constantes críticas da Igreja Católica.
“Padre Amílcar induzia aos integrantes duas prédicas, seus lances fidalgos de sintaxe, sua presença marcante. Não tinha rancor, mas regra. Hábil em conduzir católicos pouco perspicazes. Quem era descrente, se tornava crente. Quem era odioso, deixava o nevoeiro ruim. Nesse tablado, conduzia os ensinamentos.” (p 56).
Já o lobisomem, presença constante em toda a narrativa, ocupa um lugar secundário no romance. É um transgressor sim, mas um transgressor sem causa que o justifique, sem contra ideologia, desprovido de mistério:
“Enquanto isso, comentavam, o lobisomem deixou de meter medo na cidade, apavorado com a grita. ‘Deve estar no meio da gente’, opinou Danton. ‘Está nos gozando...’ , pilheriou Ligoza.” (p 41).
O romance de Sodré possui características semelhantes ao de Ramos. Ambos resgatam, a partir do relato de suas memórias, eventos históricos importantes e de valor literário inegável. Sodré processa uma narrativa bucólica, de ambientação mais ampla, que inclui o meio rural. É muito rica em alegorias e traz na figura da cobra a grande metáfora do seu romance.
Ambientada nos anos 60, a Feira de Santana retratada por Sodré vive sob a iminência do golpe militar. Antão, mulato classe média, é o personagem que transita entre os diversos ambientes demarcados pelas classes sociais.É através dele que o leitor vai conhecer e explorar o enredo. Vários mitos são resgatados: “o bicho”, figura lendária e ameaça constante às famílias feirenses; o escravo fujão e rebelde que cometeu atrocidades, o Lucas da Feira; o preto velho, representado pelo personagem Vô Alípio; e o capelão, padre polonês que incorporou a adjetivação do bicho, como alegorização do poder tirano e opressor que exerceu naquele momento de repressão e supressão das liberdades.
Os personagens que compõem a trama d’”O Bicho” são mais densos e tipificados. Dentre eles, o poeta Fernando Lopes, o pessoal da pensão, Maria Cacetão, a negrinha Nena, Dr. Osmundo, Celso Reis. Salvo poucas exceções, não se pode saber se os demais personagens existiram de verdade. As discussões regadas a licor de jenipapo na pensão de dona Ester, por ocasião das reuniões das quartas-feiras, revelam a análise política que o autor faz daquele momento histórico. O poeta Fernando Lopes é porta voz dessa crítica direta:
“- Veja, Dr. Lucio, até o início do ciclo do açúcar, a economia deste país não ia além da exploração de pau de tinta. Os europeus já adoravam coisas como o sândalo vermelho, cânfora e almíscar, e quando descobriram o pau-brasil ficaram viciados. Isto aqui, Dr., virou marreta de gringo. Era só o português, o espanhol, o francês vir chegando, esfolando a mão-de-obra que já era pelada de nascença, metendo o machado na mata atlântica e enchendo as burras de dinheiro.” (p 37).
É sempre através de seus personagens que o autor vai tecer suas criticas mais mordazes. A modernidade, representada também pela psicanálise freudiana, aplicada pelo Dr. Osmundo, é sagazmente ironizada no seguinte trecho:
“[...] - Pertenceu ao meu pai talvez o único exemplar neste país da valiosa obra de Fliess intitulada ‘As relações entre nariz e os órgãos sexuais femininos do ponto de vista biológico’, publicada em 1898. Hoje, essa preciosidade encontra-se guardada a sete chaves pelo nosso caríssimo Pena, na biblioteca pública de Feira, com partes traduzidas por meu pai.” (p 59).
Um dos relatos mais fantasiosos do livro diz respeito à experiência de Antão com a maconha. O processo alucinógeno descrito na cena remete ao lugar privilegiado ocupado pelas drogas no mundo inteiro, no final daquela década e início da década de 70. A forte influência da literatura francesa, através de seus expoentes como Rimbaud, Verlaine e Baudelaire e os movimentos hippies, exerceram grande influência sobre o autor e conferiram às drogas o status de rito psicodélico, elemento dilatador da consciência que propiciava a auto-transcendência.
Numa adaptação bem sucedida, Sodré transplanta para a cultura africana essa experiência que propocionou a Antão o tão desejado encontro com Lucas da Feira. A abordagem da cultura africana ganha um aspecto rico e valorativo a partir dos ensinamentos de Vô Alípio. A religiosidade, assim como todo acervo dessa cultura, é plenamente vivenciada pelos seus representantes. O saber “apreciar/assuntar” é o princípio da sabedoria do velho. Essa sabedoria é tratada de forma lírica:
“[...] Pois a terra faz e acontece, faz causo, que maior não há do que a vida acontecendo na barriga da mulher ou da terra. Mulher é terra, mano. Primeiro vem o céu com chuva, que é o jeito de ele se encontrar com a terra, que é o prazer dos dois e, sendo grande a emoção, forma-se o rio e a cachoeira, que transbordam, emprenham, levando a lama a explodir em verde, chamando o mundo para a festa.” (p 80).
O bicho, elemento mítico da obra de Sodré, tem o mesmo tratamento sofisticado que o lobisomem na de Fernando Ramos, embora seja bem mais explorado. Ele aparece, desde o início da narrativa, representado pela cobra. Antão tem verdadeiro fascínio por cobra; a natureza desse réptil lhe é absolutamente intrigante; sua capacidade de permanência e adaptação, além da peçonha que, traduzindo todo seu malefício, expressa o incômodo daquele momento político de absoluta opressão e violência. O bicho é, numa análise mais genérica, uma alegoria do golpe militar e do poder institucionalizado pela força, seja ela manifestada pela brutalidade, seja pela eloqüência discursiva; é também uma alegoria ao outro, ao “diferente”, à dimensão de si mesma negada.
O maniqueísmo originou diversas formas de representação do bem e do mal ao longo de toda a história da humanidade. As representações do bem assumem formas que expressam a bondade, a abnegação, a generosidade, o desapego ao ego. E a religião foi quem melhor soube moldar e difundir esse mito ordenador, tanto que as suas manifestações mais freqüentes estão ligadas às figuras dos santos e anjos. A narrativa ficcional, especialmente a que tinha por destino “educar” as crianças, moldou seus exemplos nas figuras igualmente bondosas de heróis, semideuses, gnomos, duendes e fadas. Curiosamente, a aura do bem, mesmo “divinizada”, sempre permaneceu na dimensão humana, como um mérito, uma particularidade imanente do portador da qualidade.
A manifestação do mal também surge a partir das ações sociais, da expressão dos sentimentos e das relações de poder. Ela está relacionada aos aspectos negativos das constituições humanas, especialmente referentes às transgressões da ordem instituída social e politicamente. As representações do mal também foram especialmente moldadas pela religião como elemento coercitivo e igualmente ordenador. Os mitos surgem a partir de fatos históricos e sofrem deformações pela imaginação popular, cuja exploração moral de um determinado grupo evidenciam um contra - exemplo, um desvio de comportamento a ser evitado. Porém, elas acontecem num processo distinto: à medida que o mal cresce e se torna visível, ele é cindido da dimensão humana e assume identidade própria. Surgem daí os “bichos”, que vão das bruxas horrendas que devoram crianças e voam montadas em vassouras, ao “coisa ruim”, ao chupa-cabras, ao lobisomem, aos demônios.
Nos romances aqui descritos, o discurso lendário une, além dos elementos do imaginário coletivo, elementos políticos e sociais.
Para uma coletividade, a lenda representa a valorização de seu passado, de suas tradições, de seus valores. Funciona como a apropriação de sua história, revelando o modo pelo qual os membros de uma coletividade perceberam os acontecimentos históricos, de maior ou menor importância.
* Vera Márcia Lopes Santos é professora de português, francês, literatura e redação, e aluna do Programa de Especialização em Estudos Lingüísticos da Universidade Estadual de Feira de Santana. É poeta, ensaísta e articulista. Trabalhou como repórter e redatora nos principais jornais de Feira de Santana.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007
A Reconstrução da História de Feira de Santana a partir das obras de Fernando Ramos e Muniz Sodré
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