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terça-feira, 5 de junho de 2012

O mistério da troca de guarda

Por André Setaro

Barravento, primeiro longa metragem de Glauber Rocha, apesar de somente lançado em 1962, começa a ser produzido em 1959. Sobre ser um filme do maior cineasta brasileiro de todos os tempos, Barravento se estabelece mais além na sua importância, pois se enquadra como um dos propulsores do importantíssimo – e quase esquecido pela ausência de memória característica dos brasileiros e, particularmente, dos baianos - Ciclo Baiano de Cinema, que eclodiu com Redenção (1956/1959), de Roberto Pires, o primeiro filme de longa duração feito na Bahia, que transforma a cidade de Salvador numa efervescência cinematográfica nunca vista, quando se tenta criar uma infra-estrutura capaz de dar prosseguimento, aqui, a um cinema característico da baianidade e dotado de acentos universalistas. Assim, com a aparição de Redenção, várias pessoas acreditam na real possibilidade de se fazer cinema nestas plagas, como Rex Schindler, Braga Neto, Winston Carvalho, Palma Netto, David Singer, principalmente o primeiro, que tiraram dinheiro do bolso para produzir filmes como Barravento, A Grande Feira (1961), Tocaia no Asfalto (1962) - ambos de Pires, O Caipora (1963), de Oscar Santana, Sol Sobre a Lama (1964), de Palma Netto e Alex Viany, O Grito da Terra (1964), de Olney São Paulo, obras genuinamente baianas e bancadas com capital de empresários locais. A febre, porém, tal qual um imã, atrai produtores do sul e até estrangeiros - para ficar num só exemplo: O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, produzido pelo paulista Oswaldo Massaini e que ganha a Palma de Ouro no Festival de Cannes - é bom que se diga que este é o único filme brasileiro a conquistar a tão cobiçada palma de melhor filme do Croisette.
A efervescência que toma conta da cidade se liga a um momento particular das artes baianas, que, por sua vez, se vincula ao espírito da época, configurando o que Antonio Risério chamou de a avant-garde na Bahia em ensaio do mesmo nome publicado pela Corrupio. A província, nesta época, tem um singular desenvolvimento: faz-se um teatro da melhor qualidade na Escola da Ufba do Canela, com Martim Gonçalves à frente, formando toda uma geração de intérpretes qualificados em encenações que despertam interesse de pessoas do eixo Rio-São Paulo (e até de Nova York); Lina Bo Bard revoluciona, com a criação do Museu de Arte Moderna, com seus traços modernos e dissonantes; Roelrreutter, Ernest Widmer, entre outros, desconcertam as tonalidades acadêmicas do Seminário de Música; os suplementos culturais agitam, com textos críticos e escritos literários; o Clube de Cinema da Bahia, liderado por Walter da Silveira, informa e forma uma platéia de interessados, fazendo-os ver e compreender a arte do filme, entre eles, Glauber Rocha, atento e assíduo. O Brasil cresce e parece ser o país do futuro com o desenvolvimentismo de JK - o mundo ainda não está a se acabar, como agora, com a quebradeira geral internacional e a falência do neoliberalismo perverso.
Barravento tem gestação difícil. Começa a ser filmado em 1959 por Luis Paulino dos Santos que, apaixonado pela atriz principal, Sonia Pereira, atrasa o cronograma porque ficava apenas fazendo planos demorados de sua amada. Glauber Rocha, que faz parte da equipe, com o consentimento do produtor, Rex Schindler, dá um golpe, demitindo Paulino e assumindo o controle total das filmagens. Reescreve o roteiro com José Telles de Magalhães, e termina um filme que se arrasta indefinido. Pronto o copião, o início da rodagem - pelo mesmo grupo de A Grande Feira determina a paralisação dos trabalhos de pós-produção e, somente em 1961, com o término da fita sobre a feira de Água de Meninos, Glauber, com Barravento debaixo do braço, leva-o ao Rio para ser montado, pedindo ajuda para isso a Nelson Pereira dos Santos, que, seguindo as orientações glauberianas, monta-o para que, no ano seguinte, possa ser lançado. Assim, três anos (de 1959 a 1962) tortuosos e necessários para Barravento vir à luz, tornar-se realidade na tela luminosa. Também a sua construção, que não obedece a uma intensidade dramática padrão, dificulta a articulação na montagem, que a afoiteza glauberiana queria numa composição de plástica da imagem à maneira de um Eisenstein.
O golpe, em cima de Luis Paulino dos Santos, segundo Rex Schindler, produtor do filme, não pode ser considerado assim. Mas o que explica a demissão sumária de Paulino, que é afastado do filme, e substituído por Glauber Rocha? Este e Paulino, apesar de amigos, têm diferentes visões do mundo e da vida. Schindler diz que Glauber, na época, imbuído pelas leituras de Marx e Engels, e a considerar o termo barravento como algo que muda, algo que transforma, quer que o filme proponha uma resolução de mudança social, ao passo que Paulino propõe uma mudança mística. A versão do produtor é de que há, no affair, uma questão ideológica. Paulino, que atualmente vive em comunidade, a abdicar do convívio numa sociedade de consumo, pensa Barravento como uma proposta de contemplação de uma cultura, a cultura negra do candomblé e a beleza de suas manifestações. Glauber, que primeiro surge como diretor artístico, insurge-se contra a passividade imposta ao barravento querido por Paulino e tenta mudar-lhe os rumos ficcionais. Afasta o amigo da direção no que se constitui, apesar dos desmentidos e da lenda que se forma em torno da produção, um verdadeiro golpe. Mas para dar o golpe não teria tido o apoio do produtor Schindler? A história, ainda muito mal contada, precisa ser desvendada. A fulgurante ascensão de Glauber como diretor cinematográfico faz esquecer os qüiproquós do passado. E ninguém fala mais nisso. Ponto final. Mas este ponto precisa, a bem da História do Cinema Baiano, ser bem desvendado e explicado.
Apesar de algumas tentativas de incluir conceitos de Sergei Eisenstein e da sua montagem ideológica, Barravento pode ser considerado um rascunho do que viria a seguir, uma promessa de um cineasta, que veio a traumatizar duramente o cinema brasileiro com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), uma indiscutível obra-prima. Tem sua importância dentro de um momento histórico, por ser a primeira obra de Glauber e por refletir a mentalidade de uma época em relação ao misticismo dos pescadores negros da praia de Buraquinho. O argumento é bem simples: numa vila de pescadores, a única rede pertence a um explorador, mas a comunidade não se revolta, postando-se passiva diante da opressão. A chegada de Firmino (Antonio Pitanga), vindo da cidade grande, onde se conscientizara politicamente, cheio de idéias revolucionárias, vai se chocar com o pensamento de Aruã (Aldo Teixeira), o favorito da deusa Iemanjá. Para libertar o povo, Firmino tem que destruir a credibilidade de Aruã frente aos pescadores, o que consegue no final. Desmitificar Aruã significa possibilitar aos pescadores a conscientização e a revolta. A religião, seja ela qual for, para o Glauber da época, é puro ópio do povo. O negro moderno e urbanizado derrota o negro semi-tribal e mais próximo das raízes africanas.
Neste ponto de vista, um filme preconceituoso, mas muito característico da mentalidade dos intelectuais da época. Mentalidade que seria reformulada pelo próprio Glauber em filmes posteriores - notadamente A Idade da Terra - e por Nelson Pereira dos Santos em O Amuleto de Ogum, onde o cineasta, respeitando as crendices do povo, conta a história sem tomar partido e assumir, como fez Glauber em Barravento, uma atitude paternalista com acentos revolucionários.
No elenco, além dos citados, a beleza negra de Luiza Maranhão - que desapareceu sem deixar vestígios, contando a lenda que se casou com um milionário europeu e largou o cinema, Lucy Carvalho, e Lídio Cirillo dos Santos - que viria a incorporar o beato Sebastião em Deus e o Diabo na Terra do Sol.
O restaurante e bar Barravento, na Avenida Oceânica, perto do Morro do Cristo, tem esse nome por causa do filme de Glauber.
* André Setaro - Especial para o Caderno de Cinema

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