Por Humberto de Oliveira
Foi durante a última pandemia quando, impedido de voltar a Feira de Santana, confinado num apartamento em Salvador, longe dos meus velhos pais, irmãos, parentes e amigos, sem poder fazer compras na feira livre da Cidade Nova, foi quando mais tive consciência dos laços afetivos que me prendem a esta cidade, "formosa e bendita", como nos lembram os belos versos deste poema de amor, Hino a Feira de Santana, escrito por esta fina poeta de alma sensível, a professora Georgina de Melo Erismann1. Gosto de lembrar que talvez seja este o único hino patriótico que não seja de louvor à força bruta: aqui, a conquista, definitiva, é pelo amor, como dizem os versos "Ao estranho tu sempre dominas, Com o poder do teu clima sagrado".
Tenho por esta cidade uma afeição especial. Não é uma cidade comum, embora seja parecida às demais. Tentarei mostrar porque ela é, de fato, singular. Claro que haverá quem dê de ombros e tentará convencer-se de que toda cidade é assim, ou que ela não se encaixa nos padrões esperados, e citarão nomes de várias outras urbes no mundo todo. E, bem colonizados que somos, aquelas do chamado “primeiro mundo” deverão ser elencadas como as primeiras cidades! Mas, o que importa é que Feira de Santana tem como sua principal marca, ao mesmo tempo, ser terra de exílio e terra de acolhida, terra hospitaleira.
Faço questão de tecer este elogio a minha cidade, e elogio, como diz o filósofo Merleau-Ponty, é bênção de louvor e bendizer. Porque sou daqui, desta cidade chamada Feira de Santana, e é deste lugar que quero falar, desta encruzilhada entre o Sertão e o Mar, uma cidade que me viu nascer e crescer, tornar-me adulto e, graças aos estudos e ao trabalho, pude progredir. Por isso, minha gratidão por esta terra "bem nascida entre verdes colinas". Não me canso de expressar todo o agradecimento que comigo carrego ao ver que é do passado vivido que sou constituído neste presente.
Nascido em Feira de Santana, na Kalilândia, na rua Paulo VI, numa casa vizinha à então Padaria de Zé Padeiro, (talvez um dos únicos gordos da época, além, claro, do sr. Jorge Mascarenhas, dono da Padaria da Fé!), logo depois eu seria levado para Mundo Novo, para a fazenda Ipoeira, de meus avós, onde passaria grande parte de minha infância, retornando para estudar. De uma família camponesa, lavradores, como se dizia na época, eu seria o primeiro a ser destinado aos estudos, contrariando uma tradição dos filhos de pobres que têm urgência para trabalhar e trazer dinheiro para as despesas da família. Sob o olhar por vezes atônito, muitas vezes explicitamente ressentido, de parentes e colegas, durante muito tempo, eu apenas estudei, o que era visto como um privilégio descabido e, para alguns, uma espécie de "estranheza", ou "deficiência"!
Depois de concluir o primário na antiga Escola João Florêncio,- onde hoje funciona o Arquivo Público -, quando tive como professora Therezinha Mendonça do Amaral que, ao final do ano letivo, me presenteou com o romance A Taça de Ouro, de John Steinbeck - instigando em mim o gosto pela leitura - logo em seguida, estudei no Ginásio Municipal, onde tive Agnaldo Santos, Judith Cavalcanti Paixão e Zenita Castor de Almeida (que me incentivou a estudar a Língua francesa), como bons professores, dentre os inesquecíveis.
A necessidade de trabalhar não me fez deixar de acreditar nos estudos como condição para o crescimento espiritual, emocional e material. Já fazendo a tripla jornada, trabalhando durante o dia e estudando à noite, concluí o ginasial e pouco tempo estudaria no Colégio Estadual de Feira de Santana pois, por razões de trabalho, iria morar em Camaçari e depois em Salvador, onde concluiria o Curso técnico em Contabilidade no Colégio Estadual Mario Augusto Teixeira de Freitas, e depois, prestando vestibular, cursaria Filosofia, na Universidade Católica do Salvador.
Quis o meu destino que, tendo escolhido a profissão de professor, para Feira de Santana eu voltasse. Foi nesta cidade que, juntamente com Célia, minha primeira mulher, buscamos oferecer um projeto de educação ancorado nas noções de Liberdade e Responsabilidade social, propugnado por uma ética humanista que tinha no filósofo Pedro Dalle Nogare, meu antigo professor na Universidade Católica do Salvador, um dos seus maiores expoentes.
Observe-se que, oferecendo um serviço profissional de apoio psico-pedagógico, a Escola Dalle Nogare contava com a atuação de uma psicóloga, o que causaria um certo frisson na cidade provinciana e de mentalidade autoritária, perturbada com a expectativa de retomada da democracia, nos estertores do regime militar. Era um tempo em que "psicologia era para doidos" e educar com liberdade era uma afronta aos padrões vigentes, ainda quando a palmatória, o "chapéu de burro" e o ajoelhar sobre os caroços de milho eram os castigos usuais nas escolas. Imaginar uma escola tendo como um dos seus fundamentos o dever de escutar as reivindicações das crianças e adolescentes, ou seja reconhecer a humanidade de quem era, de fato, protagonista da aprendizagem, parecia ser uma concepção "subversiva" da Educação.
Mas voltemos ao por quê de terra de exílio e de acolhida. Eu mesmo conheci, na história pessoal, tanto a acolhida que meus pais, como milhares de outros migrantes receberiam, majoritariamente vindos da zona rural, ou de pequenas cidades, como também o exílio forçado pela necessidade de buscar emprego e estudo, como eu mesmo vivenciei, no início dos anos 70, do século passado.
Terra de exílio, por falta de políticas públicas que assegurassem a criação de emprego e renda, Feira de Santana empurraria, como outras cidades, no mundo todo, seus filhos e filhas para fora de suas fronteiras, até meados dos anos 70 do século passado, quando a cidade começaria a conhecer um surto de desenvolvimento com o Centro industrial Subaé e a oferta de subsídios ocasionaria a implantação de várias indústrias, e volta a ser terra de acolhida.
Neste período, uma nova leva de imigrantes chegaria a esta "bem nascida entre verdes colinas"… do interior da Bahia, do centro sul, de várias partes do Brasil, e do estrangeiro; uma mão-de-obra mais especializada despontaria do contigente de trabalhadores. A face da cidade começa a mudar, e o comércio prospera ainda mais.
Além do tradicional comércio de gado e da movimentação da famosa feira livre da cidade, é o comércio de secos e molhados nos grandes armazéns e a variedade de lojas comerciais que constituem o verdadeiro atrativo para a vinda de milhares de pessoas à cidade em seu dia maior: segunda-feira. Preço, variedade e qualidade seriam razões para que, de simples donas de casas a comerciantes de vários matizes, todos queiram vir se abastecer na cidade cujo comércio sabe acolher a todos, e por isso mantém clientela fiel e leal, semana após semana, mês após mês, anos a fio.
Mas, não é somente pela indústria e pelo comércio que a cidade cresce e prospera, em algumas áreas, incha desordenadamente, em outras, com uma especulação imobiliária beirando a selvageria, degradando nascentes, entulhando lagoas, alterando a geografia, sem o menor respeito ao meio ambiente, aliás, seguindo um figurino quase mundial, como um preço a pagar "para alcançar o progresso", dizia-se. Vários serviços começam a ser prestados, evitando o deslocamento de seus habitantes para Salvador: de serviços médico-odontológicos, aos cursos de línguas estrangeiras, às empresas de tecnologias diversas e aos serviços educacionais.
A Universidade Estadual de Feira de Santana, onde, prestando vestibular, eu faria o curso de Letras com Francês, afirma-se no cenário educacional desde os anos oitenta e ajuda, tanto a evitar a saída dos jovens para Salvador, como a atrair centenas de outros estudantes para a cidade. Outros empreendimentos educacionais viriam oferecer seus serviços a um público carente de ensino superior: destacam-se a Faculdade Unyhana, a FTC - Faculdade de Tecnologia e Ciências, FAN - Faculdade Nobre e FAT - Faculdade Anísio Teixeira. A terra de acolhida vai se confirmando, atraindo mais gente de dentro e de fora de seus fronteiras, e tenta, mesmo se desajeitadamente, abrigar seus incontáveis filhos, cumprindo sua vocação de terra hospitaleira.
Claro que as transformações sociais e econômicas iriam provocar mudanças nos espaços sociais assim como nos comportamentos das pessoas. Os que vinham de fora também trariam outras visões de mundo que ora confirmavam, ora conflitavam os padrões locais. A televisão iria contribuir para abalar velhas mentalidades ainda rurais que se recusavam a aceitar uma modernidade, embora demasiadamente tardia.
O dinheiro muda de mãos. Os belos casarões senhoriais vão sendo vendidos, seus donos, em geral herdeiros com poucos recursos próprios, ou empobrecidos, abrem mão da sustentação de uma pompa impossível de manter. São os novos filhos adotivos, os imigrantes, os "forasteiros", a quem a cidade abrigou, que passam a ser proprietários de antigas mansões. Que nenhum valor afetivo neles deve ter despertado. É com o menosprezo dos vencedores nesta nova guerra para a conquista do novo deus chamado Dinheiro que devem ter posto abaixo belas mansões para sobre suas ruínas criarem edifícios, lojas, magazines e até estacionamentos.
A expansão urbana gera a criação de novos bairros, alguns planejados e com população numericamente superior a muitas cidades interioranas, sem falar da pujança do comércio e da rede de serviços local, ultrapassando o Anel do Contorno que antes demarcava os limites da antiga cidade. Um bom exemplo é o bairro chamado Cidade Nova.
A velha cidade, com seu centro único e em torno do qual giravam o comércio e a moradia das famílias abastadas, reconfigura-se. Ambicionando independência, bairros e condomínios tornam-se micro-cidades, seguindo uma tendência natural neste mundo que se ocidentaliza. Novos condomínios de classe média e média alta se espraiam por espaços anteriormente vistos também como periféricos, áreas rurais, ainda com presença de currais, gado e com o som dos cantos dos galos.
É comum ouvir lamentos sobre a beleza do passado desta cidade que, durante anos, fez questão de ostentar um conservadorismo que remetia aos tempos da Casa Grande e da Senzala. Tempos onde a linguagem estava carregada de preocupações denunciando os cruzamentos de cor da pele e da classe social: "você é filho de quem"? "onde você mora"? "sabe com quem está falando"? Tempos de "carteiradas" onde se procurava, supostamente, "manter cada um em seu lugar", onde se demarcava claramente "quem podia mandar" e quem deveria"“obedecer se tivesse juizo".
Como pobre que fui, como milhares de outros e outras, de quê devo ter saudades? O que esta minha cidade amada perdeu que eu deva lamentar? Talvez a neblina constante que me lembrava o fog londrino que só conhecia nos filmes, quando, à noite, nos invernos e primaveras, andando nas ruas, eu voltava para casa, depois de uma jornada de trabalho numa casa comercial e horas de estudo no colégio noturno: víamos-nos sumidos no denso nevoeiro, sem medo, no entanto, pois praticamente não se ouvia falar em assaltos. Esta mesma neblina ainda perdura, embora o asfalto a comprometa, quando, ao amanhecer, eu abro a janela do meu quarto, no primeiro andar, da minha casa na Cidade Nova e vejo a cidade inteira tornada invisível, recoberta pela cerração.
Que ninguém se engane. A vida da cidade hospitaleira permanece ativa e colorida, cimentada por relações de vizinhança e camaradagem nos bairros e foi assim que criei meus filhos brincando com outras crianças, na Rua Piazza e na Praça do Bambu e no Caminho Ilhéus, na mesma Cidade no Nova. Onde, hoje ainda, outras crianças brincam, em segurança, sob o olhar atento de outros vizinhos também pais, mães e avós.
O feirense raiz desdenha modismos e não perde uma boa tradição pré-capitalista: redes de solidariedade são mantidas e renovadas, e uma delas é, também, a relação de camaradagem e vizinhança que permanece viva e permite que se toque a campanhia, diante de um problema de saúde, ou, para pedir, ao vizinho mais próximo, como já o fiz, sem nenhum constrangimento, um fósforo, ou uma xícara de açúcar, quando o supermercado ainda estava fechado, ou sequer se encontrava aberto o mercadinho 3 M, de dona Flávia. Relações de fraternidade e confiança, de deixar a chave da minha casa com dona Lia e Ferreira, ou "seu" Antônio (que vende a cerveja mais gelada, "véu de noiva"!), meus vizinhos mais próximos.
Professor de uma universidade pública, ao contrário dos meus colegas, ciosos de sua ascensão social, decidi não arrancar minhas raízes e mantenho minha casa no mesmo bairro da Cidade Nova, nesta Feira de Santana, a terra de exílio e terra de acolhida, nesta encruzilhada perigosa onde todos os caminhos se encontram e todas as oportunidades podem estar nos olhando.
Por esta "fiandeira que vive a fiar A toalha de luz de sol posto" meu afeto e minha gratidão são grandes e sinceros. Sou um feirense amoroso, mas não cego pelas paixões, e reconheço o quanto esta cidade tem sido deixada "descuidosa de sua beleza". Mas amando minha Feira de Santana, minha terra querida, terra de exílio e de acolhida, singular dentre outras, cidade de gente hospitaleira, que mais posso fazer, senão "trabalhar para vê-la elevada"?
1 Em itálico, alguns versos deste belo Hino estarão apoiando esta minha fala.
Humberto de Oliveira, pesquisador independente, escritor, tradutor, editor da revista digital Cadernos do Sertão, membro honorário da Academia Metropolitana de Letras e Artes, membro efetivo da Academia Feirense de Letras, da Academia de Cultura da Bahia, da Academia Internacional de Literatura Brasileira e colunista do |Jornal Feira Hoje.
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Fonte: https://feirahoje.com.br/


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