Por Marco Antonio Villa
Vivemos um tempo curioso, estranho. A
refundação da República está ocorrendo e poucos se estão dando conta deste
momento histórico. Momento histórico, sim. O Supremo Tribunal Federal,
simplesmente observando e cumprindo os dispositivos legais, está recolocando a
República de pé. Mariana - símbolo da República Francesa e de tantas outras, e
que orna nossos edifícios públicos, assim como nossas moedas - havia sido
esquecida, desprezada. No célebre quadro de Eugène Delacroix, é ela que guia o
povo rumo à conquista da liberdade. No Brasil, Mariana acabou se perdendo nos
meandros da corrupção. Viu, desiludida, que estava até perdendo espaço na
simbologia republicana, sendo substituída pela mala - a mala recheada de
dinheiro furtado do erário.
Na condenação dos mensaleiros e da liderança
petista, os votos dos ministros do STF têm a importância dos escritos dos
propagandistas da República. Fica a impressão de que Silva Jardim, Saldanha
Marinho, Júlio Ribeiro, Euclides da Cunha, Quintino Bocayuva, entre tantos
outros, estão de volta. Como se o Manifesto Republicano de dezembro de 1870
estivesse sendo reescrito, ampliado e devidamente atualizado. Mas tudo de forma
tranquila, sem exaltação ou grandes reuniões.
O ministro Celso de Mello, decano do STF, foi
muito feliz quando considerou os mensaleiros marginais do poder. São marginais
do poder, sim. Como disse o mesmo ministro, "estamos tratando de
macrodelinquência governamental, da utilização abusiva, criminosa, do aparato
governamental ou do aparato partidário por seus próprios dirigentes". E foi
completado pelo presidente Carlos Ayres Brito, que definiu a ação do PT como
“um projeto de poder quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de
continuísmo seco, raso. Golpe, portanto". Foram palavras duras, mas precisas.
Apontaram com crueza o significado destrutivo da estratégia de um partido que
desejava tomar para si o aparelho de Estado de forma golpista, não pelas armas,
mas usando o Tesouro como instrumento de convencimento, trocando as balas
assassinas pelo dinheiro sujo.
A condenação por corrupção ativa da liderança
petista - e por nove vezes - representaria, em qualquer país democrático, uma
espécie de dobre de finados. Não há no Ocidente, na História recente, nenhum
partido que tenha sido atingido tão duramente como foi o PT. O núcleo do
partido foi considerado golpista, líder de "uma grande organização criminosa
que se posiciona à sombra do poder", nas palavras do decano. E foi severamente
condenado pelos ministros.
Mas, como se nada tivesse acontecido, como se
o PT tivesse sido absolvido de todas as imputações, a presidente Dilma
Rousseff, na quarta-feira, deslocou-se de Brasília a São Paulo, no horário do
expediente, para, durante quatro horas, se reunir com Luiz Inácio Lula da
Silva, simples cidadão e sem nenhum cargo partidário, tratando das eleições
municipais. O leitor não leu mal. É isso mesmo: durante o horário de trabalho,
com toda a estrutura da Presidência da República, ela veio a São Paulo ouvir
piedosamente o oráculo de São Bernardo do Campo. É inacreditável, além de uma
cruel ironia, diante das condenações pelo STF do núcleo duro do partido da
presidente. Foi uma gigantesca demonstração de desprezo pela decisão da Suprema
Corte. E ainda dizem que Dilma é mais "institucional" que Lula…
Com o tempo vão ficando mais nítidas as
razões do ex-presidente para pressionar o STF a fim de que não corresse o
julgamento. Afinal, ele sabia de todas as tratativas, conhecia detalhadamente o
processo de mais de 50 mil páginas sem ter lido uma sequer. Conhecia porque foi
o principal beneficiário de todas aquelas ações. E isso é rotineiramente
esquecido. Afinal, o projeto continuísta de poder era para quem permanecer à
frente do governo? A "sofisticada organização criminosa", nas palavras de
Roberto Gurgel, o procurador-geral da República, foi criada para beneficiar
qual presidente? Na reunião realizada em Brasília, em 2002, que levou à
"compra" do Partido Liberal por R$ 10 milhões, Lula não estava presente?
Estava. E quando disse - especialmente quando saiu da Presidência - que não
existiu o mensalão, que tudo era uma farsa? E agora, com as decisões e
condenações do STF, quem está mentindo? Lula considera o STF farsante? Quem é o
farsante, ele ou os ministros da Suprema Corte?
Como bem apontou o ministro Joaquim Barbosa,
relator do processo, o desprezo pelos valores republicanos chegou a tal ponto
que ocorreram reuniões clandestinas no Palácio do Planalto. Isso mesmo,
reuniões clandestinas. Desde que foi proclamada a República, passando pelas
sedes do Executivo nacional no Rio de Janeiro (o Palácio do Itamaraty até 1897
e, depois, o Palácio do Catete até 1960), nunca na História deste país, como
gosta de dizer o ex-presidente Lula, foram realizadas na sede do governo
reuniões desse jaez, por aqueles que entendiam (e entendem) a política
motivados "por práticas criminosas perpetradas à sombra do poder", nas felizes,
oportunas e tristemente corretas palavras de Celso de Mello.
A presidente da República deveria dar alguma
declaração sobre as condenações. Não dá para fingir que nada aconteceu. Afinal,
são líderes do seu partido. José Dirceu, o "chefe da quadrilha", segundo
Roberto Gurgel, quando transferiu a chefia da Casa Civil para ela, em 2005,
chamou-a de "companheira de armas". Mas o silêncio ensurdecedor de Dilma é até
compreensível. Faz parte da “ética” petista.
Triste é a omissão da oposição. Teme usar o
mensalão na campanha eleitoral. Não consegue associar corrupção ao agravamento
das condições de miséria da população mais pobre, como fez o ministro Luiz Fux
num de seus votos. É oposição?
Fonte: "O Estado de S. Paulo", edição deste sábado, 13
Um comentário:
Não me sinto mais representada por essa "oposição". Já foi o tempo em que vibrava com algum aparte de um parlamentar a um governista, mostrando sua luta pela verdade, pela ética e pelos nossos direitos. Hoje, tenho uma preocupação: a minha despreocupação e a de muitos com nossa oposição.
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