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quinta-feira, 16 de maio de 2024

Resenha de "A valsa entre cactos"


Por Humberto de Oliveira

A valsa entre cactos, uma cuidadosa publicação da Quarteto Editora, é o título do romance, com 151 páginas, de Conceição Carvalho, feirense de adoção, nascida na região da Chapada Diamantina, mais precisamente em Jacobina.  Com formação em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) para onde voltaria como professora substituta do mesmo curso. Conceição Carvalho já havia lançado outros livros, dentre eles O tempo não é de sabão (poesia) e Vem, vamos dar um giro ( narrativa de ficção), consolidando-se como escritora. Sua inquietação intelectual e seu gosto pela leitura levaram-na a percursos mais audaciosos e eis que oferece ao leitor, depois de um longo período de maturação, este romance que tem o emblemático título de A valsa entre cactos, narrativa bem tecida e que se inscreve na melhor tradição do realismo literário contemporâneo. É com uma ágil delicadeza que lembra a própria dança que a autora, ao construir a história pessoal de uma jovem pequeno-burguesa de uma cidade interiorana, neste cenário onde a classe média tenta esconder suas pequenezas sob disfarces de um ideário fantasioso de grandes valores morais que pregam sem muito neles acreditar, a autora reconstrói fases da história política e cultural da sociedade brasileira. De fato, sabendo utilizar-se de boas técnicas narrativas, Conceição Carvalho traz ao leitor não apenas o autoritarismo que iria engendrar o golpe cívico-militar que instituiria a Ditadura Militar no Brasil, mas mostra como estas vozes dariam apoio e validação ao regime de exceção. As vozes dos pais da principal personagem, Cândida, são bem representativas de toda uma sociedade que fecharia os olhos ao arbítrio e à violência que cresceriam nos anos seguintes, como forma de garantir o poder instituído pelos militares em 31 de março de 1964. Claro que o combate à luta armada empreendida por setores da oposição, notadamente ligados aos partidos mais radicais de esquerda, seria o mote para que a violência policial se instaurasse e tentasse convencer a população não apenas da necessidade do remédio amargo como também formar uma opinião pública acrítica e submissa.  E nas páginas do romance lá estão cenas da violência e do horror cometidos pelos representantes da Ditadura Militar.

O caráter de classe fica bem marcado neste romance construído em duas fases históricas, graças a uma bem pensada técnica de mise en abyme, onde personagens de classe média se expressam, ou têm lugar de fala, e os trabalhadores, como Tidinha, a doméstica, são apenas figurantes alheios ao que se passa ao seu redor, necessitando de traduções para que possam tomar consciência.  Neste caso, é bem exemplar das classes populares que, longe dos centros industriais, sem a força dos sindicatos, lutavam por um emprego e se achavam satisfeitos por obter uma vaga de trabalho. Não podemos esquecer do grande êxodo rural que faria as cidades começarem a inchar desordenadamente e transformaria a face do Brasil de rural a urbana. Entre cooptados ou apoiadores do regime militar de um lado, e simpatizantes de uma democracia que era mais vislumbrada como uma utopia provável e que poderia ser construída coletivamente,  do outro,  as personagens deste romance foram bem desenhadas a partir das vivências da própria autora que tem, dentre seus afetos mais vívidos, a figura da ex-reitora da Universidade Estadual de Feira de Santana, Yara Maria Cunha Pires que, com  a coragem desassombrada da personagem Moema, por sua militância política desde seus tempos de estudante universitária e depois como professora do Colégio Estadual Gastão Guimarães, em Feira de Santana, seria presa pelo regime militar como "comunista", logo potencial "inimiga do povo".  Neste ano em que se completam 60 anos do Golpe Militar, ler o romance de Conceição Carvalho é também revisitar um modus vivendi de uma classe social abastada que convivia senão com harmonia, mas com naturalidade, com uma ditadura militar.  Mas, Conceição Carvalho vai muito mais além e presta homenagem a aqueles e aquelas que mesmo ao risco da própria vida, não hesitaram em tentar criar condições para que uma  sociedade verdadeiramente democrática pudesse acontecer. Tudo isso com a delicadeza e a agilidade de quem sabe dançar  A Valsa  entre cactos.

https://humbertodeoliveira.com.br/  é professor universitário aposentado,  Chevalier dans l’Ordre des Palmes académiques pelo Governo francês por sua contribuição à difusão da língua e da cultura francesas. Atualmente é tradutor, escritor, e editor da revista www.revistacadernosdosertao.wordpress.com

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