Por Vitor Hugo Soares
No computador, ligado para produzir estas
linhas semanais de opinião, escuto cantar o artista cearense Belchior, um de
meus preferidos do primeiro time da música popular brasileira. O rapaz latino
americano que anda outra vez sumido no mundo, interpreta uma famosa música de
Chico Buarque de Holanda, gravada no álbum "Vício Elegante" (1996), no qual
empresta seu jeito especial de cantar na regravação de grandes sucessos de
compositores da MPB.
A canção que escuto é "Almanaque".
Nos versos precisos e bem humorados, um
rosário de perguntas incômodas e preocupações inusitadas em "sambas de
namoro e amor". Questões levantadas em tempos temerários (a expressão é do
grande Nestor Duarte, no título de seu romance fabuloso), pontuados de
loucuras, inquietações e dúvidas, mas que os dias correntes na Bahia, em
Brasília, em São Paulo, no País e lá fora, revelam que continuam à espera de
respostas até agora.
Os fatos, palavras e imagens tristemente
produzidos na passagem em Recife, Feira de Santana, Salvador, Brasília e São Paulo,
da blogueira Yoani Sanches, combativa e combatida dissidente do regime dos
irmão Castro, em Cuba, são atestados contundentes de atualidade das questões
que a música levantava há tantas décadas.
Um triste espetáculo de intolerância e
burrice com exposição planetária. Daqueles que o conceberam nos desvãos de
palácios, gabinetes e embaixada, e dos que os executaram como "paus
mandados" ou inocentes inúteis. É difícil entender - e mais difícil ainda
explicar -, um espetáculo assim em Recife: a capital pernambucana de tantos
heróicos resistentes em longos combates pela democracia e contra a repressão
nos anos da canção de Chico, ou em passado mais remoto.
Ou aquele show grotesco de violência e
subserviência misturadas, encenado na noite vergonhosa de segunda-feira passada
em Feira de Santana. A gloriosa e honrada cidade na entrada do sertão da Bahia,
de tantas jornadas históricas lideradas por um de seus filhos mais ilustres, o
saudoso prefeito afastado pelo regime militar-civil em 64, Francisco Pinto.
Mais tarde, o deputado Chico Pinto, que se
transformaria em um dos mais dignos e emblemáticos parlamentares da história do
País em qualquer tempo. Ao lado do colega e amigo pernambucano Fernando Lyra
(que morreu dias antes dos episódios deprimentes nas duas cidades que ele tanto
amou e exaltou), Chico Pinto é uma referência nacional do bom combate na
política e na vida pública e privada, inimigo ferrenho de todas as ditaduras,
até a morte.
Escuto a voz cortante de Belchior
emprestada à interpretação da música de Buarque:
"Ó menina vai ver nesse almanaque
como é que isso tudo começou / Diz quem é que marcava o tic-tac e a ampulheta
do tempo disparou / Se mamava se sabe lá em que teta o primeiro bezerro que
berrou”.
Penso: O que e quem teria movido os
cordéis daqueles mansos cordeiros do poder, que agora, com olhos inflamados e
veias do pescoço quase explodindo de ira, acenam com notas falsificadas de
dólares nas mãos? Militantes femininas de presumíveis "partidos de
esquerda e ongs", que puxam os cabelos e tentam intimidar com gestos vis e
palavras grosseiras a jovem blogueira cubana, recebida em sua primeira viagem
permitida fora de seu país aos gritos de "vendida ao capitalismo
americano", no Aeroporto dos Guararapes, na capital de Pernambuco.
Quanta ironia na cena inacreditável!
Belchior segue com as incômodas perguntas
de "Almanaque": Quem penava no sol a vida inteira/ como é que a
moleira não rachou?/ Me diz, me diz/ Quem tapava esse sol com a peneira e quem
foi que a peneira esfuracou / Me diz, me diz, me responde por favor/ Quem
pintou a bandeira brasileira/ Que tinha tanto lápis de cor?"
E a imagem pula para Feira de Santana : A
horda ululante impede a exibição do documentário "Conexão
Cuba-Honduras", do cineasta baiano Duda Galvão, um dos motivos principais
da visita de Yoani ao Brasil. No meio do caos, um momento de luz e lucidez. Na
Feira de Chico Pinto, a digna e corajosa figura do senador paulista, Eduardo
Suplicy enfrenta a turba enfurecida com uma convocação à reflexão e ao debate.
Assim evita o pior, mesmo sem impedir o desastre que já estava consumado.
O resto é o que se viu e se vê no rastro
da passagem da blogueira por Brasília, São Paulo e onde quer que vá a
dissidente cubana em sua luta, armada com uma câmera e um computador, contra a
intolerância e a favor da liberdade de expressão. Ah, e um ar sereno e o riso
irônico ao encarar os que a ofendem, parecendo dizer com os olhos: "Senhor,
perdoai-os. Eles não sabem o que fazem!"
Ao fundo, antes do ponto final, Belchior
segue com as perguntas da canção de Chico Buarque:
..."Quem é que sabe o signo do capeta/ E o
ascendente de Deus Nosso Senhor /Quem não fez a patente da espoleta/ Explodir
na gaveta do inventor/ Me diz, me diz, me responde por favor/ Quem tava no
volante do planeta/ Quando o meu continente capotou? / Vê se tem no almanaque,
essa menina/ Como é que termina um grande amor. Me diz, me diz, me responde por
favor/ Se adianta tomar uma aspirina, ou se bate na quina aquela dor?".
Responda quem souber!
Vitor Hugo Soares é jornalista
Fonte: "Blog do Noblat"
O grifo é do Blog Demais
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