Por Reinaldo
Azevedo
Nem sempre
concordo com o jornalista e ex-deputado Fernando Gabeira, mas admito que já há
muito ele tem se dedicado a temas que considero pertinentes. E tem se
posicionado sobre eles com a devida responsabilidade. Mais: Gabeira fez parte
da geração que escolheu o caminho da ditadura comunista para "corrigir o
Brasil. Não o aplaudo por seu suposto mea-culpa - esse nunca foi o ponto. Eu o
aplaudo por sua adesão realmente sincera, sempre comprovada, aos valores
universais da democracia. Infelizmente, não é o padrão. Muitos dos que são hoje
beneficiários da democracia a tem como mero valor tático.
No Estadão de
hoje, ele escreve um excelente artigo intitulado "Lula e nosso futuro comum".
Correto da primeira à última linha, que remete a um ditado latino, sem autoria:
"Os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir",
ou em latim: "Quos volunt di perdere dementant prius".
A citação no singular é mais conhecida: "Quem vult deus
perdere dementat prius" - “Deus primeiro enlouquece aquele a
quem quer destruir". O problema de "deus", no singular, é que a frase parece
remeter ao Deus único, este nosso (ou meu, hehe), não àqueles vários do
paganismo, que viviam atazanando os homens. Mas isso também tem explicação. Uma
das variantes do ditado era com Júpiter: "Quem vult Jupiter…" E Júpiter, em
certo sentido, era "o deus" porque senhor do Olimpo.
A frase é muitas
vezes atribuída a Eurípedes, autor de coisas absolutamente notáveis. Não
escreveu essa, mas certamente a subscreveria. Ao artigo de Gabeira.
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O ponto de partida é uma frase de Lula: "Não deixarei que um tucano assuma de novo a Presidência". Lembro, no entanto, que não sou de pegar no pé de Lula por suas frases. Cheguei a propor um “habeas língua” para o então presidente na sua fase mais punk, quando disse que a mãe nasceu analfabeta e que se a Terra fosse quadrada a poluição não circularia pelo mundo. Lembro também que hoje concordo com o filósofo americano Richard Rorty: não há nada de particular que os intelectuais saibam e todo mundo não saiba. Refiro-me à ilusão de conhecer as leis da História, deter segredos profundos sobre o que dinamiza seu curso e dominar em detalhes os cenários futuros da humanidade.
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O ponto de partida é uma frase de Lula: "Não deixarei que um tucano assuma de novo a Presidência". Lembro, no entanto, que não sou de pegar no pé de Lula por suas frases. Cheguei a propor um “habeas língua” para o então presidente na sua fase mais punk, quando disse que a mãe nasceu analfabeta e que se a Terra fosse quadrada a poluição não circularia pelo mundo. Lembro também que hoje concordo com o filósofo americano Richard Rorty: não há nada de particular que os intelectuais saibam e todo mundo não saiba. Refiro-me à ilusão de conhecer as leis da História, deter segredos profundos sobre o que dinamiza seu curso e dominar em detalhes os cenários futuros da humanidade.
Nesse sentido, a
eleição de Lula, um homem do povo, sem educação formal superior, não
correspondeu a essa constatação moderna de Rorty. Isso porque, apesar de sua
simplicidade, Lula encarnava a classe salvadora no sonho dos intelectuais, via
luta de classes como dínamo da História humana, e traçava o mesmo futuro
paradisíaco para o socialismo. Na verdade, Lula falava a linguagem dos
intelectuais. Seus comentários que despertaram risos e ironias no passado eram
defendidos pelos intelectuais com o argumento de que, apesar de pequenos
enganos, Lula era rigorosamente fundamentado na questão essencial: o rumo da
História humana.
A verdade é que a
chegada do PT ao poder o consagrou como um partido social-democrata e,
ironicamente, a social-democracia foi o mais poderoso instrumento do
capitalismo para neutralizar os comunistas no movimento operário. São mudanças
de rumo que não incomodam muito quando se chega ao poder. O capitalismo é
substituído pelas elites e o proletariado salvador, pelos consumidores das classes
C e D. Os sindicalistas vão ao paraíso de acordo com os critérios da cultura
nacional, consagrados pela canção: É necessário uma viração pro Nestor, que
está vivendo em grande dificuldade.
Se usarmos a
fórmula tradicional para atenuar o discurso de Lula, diremos que o
ex-presidente queria expressar, com sua frase sobre um tucano na Presidência,
que faria todo o esforço para a vitória do seu partido e para esclarecer os
eleitores sobre a inconveniência de eleger o adversário. Lula sabe que ninguém
manda no processo eleitoral. São os eleitores que decidem se alguém ocupará a
Presidência. Foi só um rápido surto autoritário, talvez estimulado pelo tom de
programa de TV, luzes e uma plateia receptiva.
Se o candidato
tucano for, como tudo indica, o senador Aécio Neves, também eu, em trincheira
diferente da de Lula, farei todo o esforço para que o tucano não chegue à
Presidência. Aécio foi um dos artífices na batalha para poupar Sérgio Cabral da
CPI e confirmou, com essa manobra, a suspeita de que não é muito diferente do
PT no que diz respeito aos critérios de alianças e ao uso da corrupção dos
aliados para fortalecer seu projeto de poder. Tudo o que se pode fazer, porém,
é tornar clara a situação para o eleitor, pois só ele, em sua soberania, vai
decidir quem será o eleito.
Na verdade, essa
batalha será travada também na esfera da economia. Vivemos um momento singular
na História do mundo. A crise mundial opõe defensores da austeridade, como
Angela Merkel, e os que defendem mais gastos e investimentos, dentro da visão
keynesiana de que a austeridade deve ser implantada no auge do crescimento, e
não durante o período depressivo. O PT dirigiu o País num período de
crescimento e muitos gastos, não tanto no investimento, mas no consumo. É
possível que esse modelo de estímulo à economia tenha alcançado seus limites.
Muito
possivelmente, ainda, o curso dos acontecimentos não dependerá tanto da vontade
de Lula nem dos nossos esforços individuais. A democracia prevê alternância no
poder. E a análise de como essa alternância se dá na prática revela, em muitos
casos, uma gangorra entre austeridade e gastança. De modo geral, a crise
derrota um governo austero e coloca seu oposto no poder, como na França. Mas às
vezes derrota um governo social-democrata e elege seu adversário direto, como
na Espanha.
Pode ser que o
esgotamento do modelo de estímulo ao consumo abra espaço para discurso de
reformas fiscal e trabalhista, de foco em educação e infraestrutura, enfim, de
uma fase de austeridade. E não é totalmente impossível que um partido de
oposição chegue ao governo. Restaria ao PT, nesse caso, um grande consolo: ao
cabo de um período de austeridade, o partido teria grandes chances de voltar ao
poder com seu discurso do "conosco ninguém pode", do "vamos que vamos", "nunca
antes neste país"… Não estou afirmando que esse mecanismo vai prevalecer, é uma
das possibilidades no horizonte. A outra é o próprio PT assumir algumas das
diretivas de austeridade e conduzir o processo sem necessariamente deixar o
poder.
Por mais que a
crise seja aguda, o apelo ao consumo e à manutenção de intensas políticas
sociais é muito forte na imaginação popular. O discurso de austeridade só tem
espaço eleitoral quando as coisas parecem ter degringolado.
O futuro está
aberto e não será definido pela exclusiva vontade de Lula. Com todo o respeito
ao Ratinho e sua plateia, o povo brasileiro é mais diverso e complexo. Se é
verdade que a História não se define nas academias intelectuais, isso não
significa que ela tenha passado a ser resolvida nos programas de auditório.
No script do
socialismo real o proletariado foi substituído pelo partido, o partido pelo
comitê central e o comitê central por um só homem. No script da
social-democracia tropical Lula substituiu o proletariado, o partido, o comitê
central e o próprio povo brasileiro ao dizer que não deixará um tucano voltar à
Presidência. Se avaliar com tranquilidade o que disse, Lula vai perceber que
sua frase não passa de uma bravata.
O que faz um homem
tão popular e bem-sucedido bravatear no Programa do Ratinho é um mistério da
mente humana que não tenho condições de decifrar. A única pista que me vem à
cabeça está na sabedoria grega: os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem
querem destruir.
Fonte: "Blog Reinaldo Azevedo"
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