Por Carlos Eduardo Mansur - Jornalista. No futebol, beleza é fundamental
Seria possível tratar da consagração do Botafogo em Buenos Aires das tantas formas que o futebol permite: pela qualidade técnica dos jogadores, pelo duelo tático de uma final marcada por uma expulsão no minuto inicial, pelos gols ou pelos grandes personagens. Mas o que se viveu foi, acima de tudo, uma história humana que precisa ser contada a partir do ponto de vista do torcedor alvinegro.
No futebol ou na vida, há momentos em que só é possível entender a dimensão de uma conquista, a alegria que ela proporciona, quando se compreende o tamanho e a dor das feridas, o percurso até poder comemorar algo tão grande, os traumas. No caso do Botafogo, havia cada um destes elementos: a espera, a memória recente de um clube que parecia desenganado, e depois a mais cruel decepção justamente quando o time dera à arquibancada o direito de voltar a sonhar.
Era natural que os jogadores ou a comissão técnica do Botafogo de 2024 rechaçassem as comparações com 2023. De fato, foi montado um time quase todo novo. Mas se jogadores vão e vêm, o torcedor fica. E não havia torcedor mais machucado do que o botafoguense. É impossível entender as pessoas atiradas ao chão, os abraços, o êxtase de 2024 sem pensar no 2023, um daqueles desapontamentos que faz o torcedor se questionar se, um dia, terá o direito de ser feliz. Quando Júnior Santos apanhou o rebote, no minuto final dos acréscimos, e decretou o 3 a 1 no Monumental, era difícil dizer se havia mais gritos ou mais lágrimas. O futebol, que com tanta frequência sabe ser cruel, havia recompensado aquela gente.
Para o torcedor alvinegro, a jornada em Buenos Aires ameaçou, por um instante, ser uma síntese do que ele viveu nos últimos dois anos. Dezenas de milhares viajaram para a Argentina cheios de esperanças e sonhos, porque ao longo do ano viram seu time jogar o melhor futebol do Brasil. O domínio na arquibancada era brutal. Mas com menos de um minuto uma expulsão parecia roubar, tão precocemente, o direito de ao menos sonhar com uma final disputada em igualdade de condições. O futebol parecia aprontar outra com o Botafogo.
Àquela altura, todos se voltaram para o banco de reservas, à espera de uma intervenção de Artur Jorge. Ela veio, mas não sob a forma de uma substituição. Se o Atlético-MG construía pouco a partir de seus meias, se apostava em direcionar ataques para os lados do campo e, a partir dali, cruzar bolas, o Botafogo se reordenou para defender a área. Luiz Henrique ajudava Vitinho pelo lado em que atacava Arana; Marlon Freitas recuava entre Barboza e Alex Telles para não sacrificar Almada na marcação e combater o lado de Gustavo Scarpa; uma linha de até seis homens defenderia a área enquanto o quarteto ofensivo continuaria em campo para oferecer ameaça com bola.
Mais do que não sofrer com um Atlético-MG pobre de criação, o Botafogo dava estocadas. A cada instante parecia mais à vontade, fosse com Igor Jesus ganhando duelos e acionando Almada e Savarino, fosse com a bola saindo tocada de trás. Luiz Henrique fez o primeiro apanhando uma bola na área, depois conseguiu um pênalti cobrado por Alex Telles. Por vias diferentes das esperadas, ou seja, com dez homens, o Botafogo confirmava o que se dizia antes da final: era melhor time. O curioso, naquele instante, era a mistura de celebração com um certo tipo de moderação auto-imposta. Nenhum alvinegro se permitira dar a situação como resolvida.
Não é justo avaliar esta atuação do Botafogo pelos números, pelas estatísticas. Tampouco reprovar que, no segundo tempo, o time tenha sofrido um gol e permitido ao menos duas ótimas chances ao Atlético-MG. Se já soa inconcebível atravessar uma final de Libertadores sem sofrer, o que dizer de uma decisão jogada por mais de 100 minutos com dez homens? Gabriel Milito colocou Bernard, conseguiu ocupar mais o meio-campo e a frente da área do Botafogo com movimentos dele e de Vargas ou Paulinho, explorou o setor em que o rival se fragilizara. E pior: fez um gol com um minuto de etapa final.
Artur Jorge, agora sim, precisou intervir com mudanças de jogadores. Colocou Danilo, que se metia entre zagueiros para proteger a área enquanto Marlon Freitas duelava no meio-campo. Mais adiante, sua última cartada foi renovar fôlego com Júnior Santos e Matheus Martins nos contragolpes. Vargas teve duas grandes oportunidades, mas não fez.
Conforme o relógio andava, algo acontecia atrás do gol defendido por John, reduto principal dos torcedores alvinegros. Não que eles perdessem o receio, traumas não são vencidos tão facilmente. Mas havia instantes em que os cantos eram mais intensos, como se coexistissem o medo de nova frustração e a sensação de que, desta vez, o futebol não trairia o Botafogo. Afinal, tudo tem limite.
Quando a bola desviada por Alan Franco encontrou Júnior Santos, o que aconteceu foi mais do que um gol. Aquele chute encerrou décadas de espera pelo maior título do continente, representou a redenção, a libertação de quem há tão pouco tempo viu seu clube parecer condenado a nunca mais sequer sonhar com os troféus mais importantes. O gol foi um desabafo, mas também uma espécie de reparação com tanta gente que se machucou muito, que há um ano fora autorizada a sonhar de novo, até ver tudo escapar da mais inverossímil das maneiras.
Era justo com o botafoguense que fosse dessa forma: com o melhor futebol do Brasil, com uma vitória contundente, com a demonstração de força de sua gente numa Buenos Aires invadida. O Botafogo foi libertado.
Fonte: Blog do Mansur
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