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terça-feira, 1 de maio de 2012

"Separados legalmente"


Por Yvonne Maggie
Um índio, com seu imenso cocar de penas brancas, pretas e encimado por um penacho azul, vestindo uma camisa do Clube de Regatas Vasco da Gama, com a cruz de malta no peito, surgiu no meio do plenário do Supremo Tribunal Federal gritando que queria cotas para índios, mestiços, ciganos, caboclos e brancos pobres e foi retirado à força por um segurança "mulato", de hoje em diante legalmente definido como negro. Não foi preciso muito tempo para sentirmos os efeitos da decisão dos juízes do STF na tarde do dia 26 de abril em julgamento histórico no qual se proclamou a constitucionalidade do sistema de cotas raciais no Brasil.
Nunca havia assistido a um julgamento na nossa Corte Suprema e fui com a intenção de ver, ao vivo, o processo e as formas ritualizadas de decidir sobre uma questão de princípio como esta que seria discutida. O que vi e ouvi foi um desfilar de argumentos a favor da "raça".
O ministro relator, Ricardo Lewandowski, leu o seu voto que durou mais de uma hora para afirmar peremptoriamente a preponderância da "raça" nas leis como forma de extirpar o racismo. Depois de desfiar muitos nomes de Aristóteles, passando por John Rawls, ao sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, afirmou que o critério étnicoracial era perfeitamente constitucional. O ministro do STF elencou argumentos que se repetem como mantra nos movimentos sociais. O relator confessou até que tinha estado na Índia, o primeiro país a implantar cotas para a proteção dos intocáveis que já duram mais de quarenta anos. Ricardo Lewandowski é professor titular da USP e ficou impressionado com o sistema indiano. Só não contou ao público que nesses quarenta anos não cessaram os conflitos étnicos que, ao contrário, foram exacerbados. Não disse também que lá as cotas acabaram sendo inseridas na Constituição e parece não ter lido muito sobre este processo naquele país.
O ministro relator não foi além de uma visita à Índia e não viu mais do que a superfície da questão e em nome do princípio de realidade, a tal igualdade material por ele acionada, jogou no lixo a realidade dos princípios. Em seu voto, nem de longe mencionou o ponto crucial levantado por muitos contra esta política e que foi expresso pelos juízes da Suprema Corte dos EUA em várias ocasiões, a começar em 1978. Legislar em nome da "raça" e colocá-la na letra da lei com a finalidade de extirpar o racismo tem o efeito de eternizar a separação entre os cidadãos, afirmaram os juízes da Suprema Corte americana. No entendimento do ministro relator, a Suprema Corte americana considerou legal e constitucional a utilização do critério étnico-racial para alocar estudantes nas universidades. Finalmente, ao declarar seu voto lançou a pérola que ficará para a história como a sentença que nos levou a instituir um estado racializado: "… os programas de ação afirmativa tomam como ponto de partida a consciência de raça existente nas sociedades com o escopo final de eliminá-la. Em outras palavras, a finalidade última desses programas é colocar um fim àquilo que foi seu termo inicial, ou seja, o sentimento subjetivo de pertencer a determinada raça ou de sofrer discriminação por integrá-la." O relator considerou constitucional inclusive o tribunal racial, aquele que escandalizou o Brasil ao afirmar que gêmeos univitelinos eram de cores ou "raças" distintas.
Todos os ministros da nossa Corte maior seguiram o voto do relator.
A separação legal dos cidadãos é um caminho sem volta. O sentimento de pertença a uma "raça" - que aliás é frágil ou nulo no Brasil - se infiltra de tal maneira na vida social que passa a ser uma nova aspiração, como se viu na cena inaugural do índio de cocar exigindo cotas para outras minorias. Separar por força de lei é uma guinada fortíssima na nossa história e não me digam que não havia vozes discordantes com argumentos importantes, que nem sequer foram considerados, por serem de antemão definidos como hipócritas, reacionários, racistas e produzidos por "marginais".
A decisão do STF no julgamento do dia 26 de abril de 2012 fará esta Corte entrar para a história como aquela que advogou pelo Estado Racial no País. Votando pela constitucionalidade do critério étnicoracial para a distribuição de direitos, os ministros inscreveram o nosso país no rol dos que separam legalmente os cidadãos em "raças" distintas rasgando a Constituição brasileira e a Carta da ONU. Esta onda era esperada e se estenderá por longos anos. O primeiro país, fora da África, a criticar oficialmente o apartheid da África do Sul em histórico pronunciamento do presidente Juscelino Kubitschek na década de 1950, acaba de se tornar um Estado de leis raciais.
Fonte: "O Globo"

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