Por Gaudêncio Torquato
A ideia lançada por
Lula pegou. A eleição de outubro deverá ser a mais povoada de "postes" nesses
tempos cheios de surpresas, reviravoltas e maquinações no terreno político. No
Maranhão, Ceará, Pernambuco e Bahia, candidatos tirados do bolso do paletó dos
chefes do Poder Executivo começam a "iluminar" o ambiente regional, na esteira
da nova liturgia que se instala na paisagem: a elevação de perfis ao altar de
governador de Estado sem os escolhidos passarem pelo longo corredor de mandatos
parlamentares e, na maior parte dos casos, sem terem obtido um voto popular
sequer em suas trajetórias.
O fato não chega a
ser propriamente novidade, eis que tanto a chefe da Nação como o prefeito da
maior cidade do país tomaram seus assentos sem nunca terem se submetido ao
sufrágio universal.
Coisas novidadeiras
numa cultura política escrita com o lápis de caciques e sob a tradição de
costumes passados de pais para filhos, cuja expressão de modernidade é mais a
idade dos novos coronéis do que pensamento compromissado com reformas na seara
política.
Nos férteis
terrenos eleitorais do PT, feitos extraordinários costumam ser creditados ao "feeling" do ex-presidente Luiz Inácio, que escolhe e impõe nomes ao partido,
como ocorreu com a presidente Dilma e o prefeito Haddad.
Maior liderança
popular e mais forte cabo eleitoral do país, "respirando política pelos poros",
como se costuma dizer dele, sua vontade é ordem e sua orientação, lei. Não
sobra perfil capaz de contrariá-lo.
Seguindo essa
vereda, os governadores Cid Gomes, Roseana Sarney, Eduardo Campos,
pré-candidato à presidência, e Jaques Wagner, entre outros, dão mostras de que
o modo lulista de escolher candidato é "a invenção da vez". Pode ser até uma
forma menos democrática por privilegiar o recorrente mote: "quem é dono da
flauta dá o tom". Mas, inegavelmente, é medida prática.
Evita discussões
prolongadas entre aliados, acelera a formação de parcerias, antecipa o jogo
eleitoral, na medida em que os preteridos passam a seguir outros rumos,
enquanto eventuais dissabores passam a ser administrados no balcão de
recompensas.
Afinal de contas, qual o significado desse novo modus
faciendi?
Sobressai,
primeiro, a sensação de um sopro de renovação na esfera política. Algo como: se
a reforma política está emperrada no Congresso, a sociedade, à sua maneira,
pavimenta o caminho de novas lideranças, elegendo perfis assépticos, não
contaminados pelo vírus da corrupção, particularmente quadros técnicos com
experiência na administração pública.
À inércia do poder
centrífugo (Legislativo, Executivo), reage o poder centrípeto, a força social
organizada, que identifica na planilha de nomes aqueles com capacidade de
representar as demandas populares. Portanto, o novo ordenamento condiz com o
clima social.
Há muito a
comunidade clama por partidos com programas claros e consistentes;
representantes mais próximos às comunidades; um sistema de votação que
contemple quadros de maior expressão eleitoral, sem puxar para a Câmara
candidatos de parca votação; figuras que desfraldem os valores republicanos.
As imagens são
inescapáveis: o copo de águas sujas transbordou. Ou ainda, não há mais como
jogar por baixo do tapete o lixo acumulado pela velha política. O eleitor se
mostra cansado de ouvir as mesmas lorotas. A cada legislatura, recorre-se à
pregação da reforma política. Às vésperas do pleito, o saldo é zero. Como ir às
urnas respirando os ares poluídos que, há décadas, contaminam os pulmões da
República?
Pouca coisa muda e,
ante a inação do Poder Legislativo em matéria eleitoral, as decisões, mesmo
homeopáticas e de pouco empuxo na escala dos avanços, acabam sendo tomadas pelo
Judiciário.
Os últimos retoques
no reboco do velho casarão das urnas acabam de ser dados pelo Tribunal Superior
Eleitoral, que proibiu o uso de telemarketing em campanhas eleitorais,
obrigando, ainda, a adoção de legenda ou a língua de sinais (libras) nos
debates a serem promovidos pela TV.
Por falta de
densidade (responsabilidade do Legislativo), a Justiça Eleitoral usa o pincel
para uma rápida camada cosmética. Mais uma questão de lana-caprina.
E assim as
frustrações das camadas sociais vão se acumulando e disparando os mecanismos de
cognição dos conjuntos eleitorais. O primeiro movimento é na direção das caras
novas no palco da política. Na parede dos velhos retratos, a atenção se volta
para a última foto, a figura desconhecida, o sinal diferenciado no painel da
mesmice. "Quem sabe esta pessoa não faria melhor do que o fulano (quem foi
mesmo?) em que votei na última vez (quando mesmo)"? É a dúvida do eleitor.
Portanto, os
dirigentes tirados da cartola por Lula da Silva e os "postes" que tentarão
exibir suas luzes nos próximos meses são, na verdade, extensões simbólicas do
ciclo que se abre na política por força de uma nova disposição social, cuja
inspiração é a de querer romper com velhos paradigmas. Para chegar à
presidência da República, não há mais necessidade de longa carreira política,
como a que teve Jânio Quadros.
Eleito suplente de
vereador, em 1947, assumiu o mandato com a cassação de vereadores; depois, foi
o deputado estadual mais votado (1951), em seguida, prefeito de São Paulo
(1953), governador do Estado (1955), deputado federal pelo Paraná (1958, mas
não exerceu o mandato), presidente da República (1961) e novamente prefeito de
São Paulo (1985).
A par dos traços de
assepsia política, presentes nos perfis dessa nova geração de dirigentes, o
feitio técnico complementa a identidade, a denotar sua agregação à esfera da
administração planejada e consequentes programas com foco em prioridades, ações
balizadas por critérios racionais e de pouco comprometimento com populismo
eleitoreiro.
Esse é o dilema que
enfrentam, pois a modelagem técnica das gestões nem sempre resulta em urnas
fartas. O consolo é constatar que o voto começa a deixar o coração do
brasileiro para chegar à cabeça.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor
titular da USP, consultor político e de comunicação.
Fonte: "Blog do Noblat"
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