Editorial
A aprovação das cotas raciais pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) encerra apenas do ponto de vista institucional a discussão sobre a
reserva de vagas para estudantes negros na universidade.
Ficam em aberto, no entanto, outras questões que não podem
ser resolvidas pelo viés próprio de decisões como a tomada pela Corte semana
passada.
Uma delas é que se deixou espetada na conta do branco pobre a
fatura da suposta "dívida histórica" da sociedade brasileira com os negros, que
a brigada racialista invariavelmente antepõe como pressuposto da defesa de suas
ideias.
De resto, é discutível o alcance desse resgate de "dívida"
social, num país que patrocinou uma odiosa escravidão, fato inquestionável, mas
cuja história registra casos de ex-escravos que, libertos e tendo ascendido
socialmente, passaram também eles a ser donos de escravos. Alguns foram
negociantes no ramo.
Outra questão, de alcance mais amplo, é que se relega a segundo
plano, em nome do alegado problema da discriminação de que seriam vítimas os
estudantes negros brasileiros, a questão-chave, a mãe de todas as ações
afirmativas, na qual se inserem as cotas: a melhoria do ensino básico público.
Este, sim, seria o ponto de inflexão da educação no país.
Enfrentá-lo com iniciativas que de fato deem condições a estudantes pobres,
independentemente da cor da pele, de pleitear seu direito à ascensão social
baseada num ensino de boa qualidade seria contundente demonstração de justiça
social.
Essa visão, mais de acordo com a realidade social do país,
baseia-se numa constatação: não é em razão da cor da pele que decorrem as
baixas taxas de acesso do estudante negro à universidade.
Este inegável e vergonhoso indicador é resultado das poucas
oportunidades que o ensino público de base oferece ao estudante pobre, em
geral, de se instruir, e, por conseguinte, de disputar vagas - nas faculdades e
no mercado de trabalho - em igualdade de condições com aqueles mais bem
qualificados.
O negro tem presença rarefeita na universidade não por ser
negro, mas por ser pobre.
Outra questão a ser discutida é o modelo sobre o qual se
alicerçou todo o movimento pela instituição das cotas raciais no Brasil. A
referência direta é o sistema americano. Ao importar a réplica dos Estados
Unidos, o movimento cotista eclipsou aspectos que distinguem a sociedade
americana da brasileira.
Relevou-se, por exemplo, o pressuposto histórico de que, lá,
a sociedade se constituiu sobre "raças", ao passo que no Brasil consagra-se o
princípio da miscigenação. Aqui, o risco é de o país ficar suscetível a tensões
até agora inexistentes.
Além disso, enquanto a sentença do STF implica a adoção de um
percentual rígido de reserva de vagas nas universidades, a Suprema Corte americana
estabeleceu um conjunto de fatores baseados no nível social do candidato, que
obrigatoriamente devem ser levados em conta como critérios para a aplicação das
cotas. Esse princípio, de certa maneira, dilui o caráter racialista do sistema.
A decisão do STF, por óbvio, tem de ser respeitada, sob pena
de se arranhar o protocolo do estado de direito. Mas é uma posição que não
invalida - antes, a torna inadiável - a tarefa de se buscar, para todos, a
democratização da educação, pela radical melhoria do ensino público básico.
Fonte: "O Globo"
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