Por José Umberto
Fellini provocou um pouco depois da queda do muro
de Berlim: "A televisão é um eletrodoméstico." Essa entrevista irônica
antecedia a chegada da internet. O conjunto de transformações tecnológicas
prepara a passagem abrupta e radical da mecânica analógica para o dígito
binário digital. Perpassa assim o campo cíclico de oscilações como rolo
compressor duma sinfônica da metáfora em mutações.
O fotograma é substituído por bits enquanto os
templos profanos de massa das salas de exibição convencionais são transferidos
para as salas de estar domésticas. Um notebook passa a gênero de primeira
necessidade, como a geladeira. Passamos a assistir a uma série, a uma live ou a
um filme transitando no metrô ou mesmo sentado absorto no vaso sanitário. A
ritualística do espectador na coletiva sala de exibição se mobiliza para a sala
de estar da residência privada do telespectador. Ocorrendo uma fratura de
posição diante do entretenimento, do conhecimento e da informação.
O cinema assimila as rupturas profundas das
mudanças estruturais na economia de mercado contemporânea. Os sofisticados
efeitos especiais se compactuam aos games na antevéspera da futurista
holografia no cyberspace sintonizados a um compasso de tempo e de memória
acelerado e expansivo. Acoplado, simultaneamente, a um espaço concentrado e
comprimido. Essa nova circunstância expressa a incerteza e estimula a distopia,
ensaiando o território opaco que afunila a patologia com a fenomenologia.
A "sétima arte" (símbolo de contato social)
confunde-se hermeneuticamente com o audiovisual, paradigma de consumo de âmbito
mais privado. Há vinte anos são introduzidas as plataformas de streaming
(modalidades de distribuição) que atua em rede na internet para disponibilizar
multimídia. Essa difusão em pouco tempo torna-se mainstream. Com a pandemia da
covid-19 o streaming cai como uma luva de demanda: urgência de isolamento
social e negação de ajuntamento de pessoas.
Podemos afirmar que ingressamos na potência do
invisível. A indeterminação do vírus expõe o corpo a uma situação de mutante
vulnerável enquanto as subjetividades arranham a teia do imprevisível. No
intervalo, todos passam a ser vigiado no tablado do big brother. Arranhamos,
desse modo, as filigranas do totalitarismo onde o desconhecido passa à condição
de sujeito. Uma travessia de encontro marcado da semiologia com a neurociência.
A curva da era da nanotecnologia abraça o éon da inteligência artificial. No
subterrâneo, movimentam-se a regressão e a prosperidade. A invisibilidade do
vírus penetra na caverna da esfinge e gera o monstro do medo, indecifrável na
sua gélida imprevisão.
O estado de natureza do momento integra o
antropoceno que por sua vez, no interior da flora e fauna, o nosso instante
está suspenso no antropomórfico. O cinema possibilita testemunharmos, na superfície
da cena, a comunidade regida pelo controle de voyeurismo em plantão contínuo.
Uma humanidade que preda o meio ambiente enquanto os bichos invadem as cidades
sub-repticiamente: hibridação ecológica. O orgânico ascende ao topo de
privilégio sanitário e a pulsão de morte ganha celebridade nos interstícios
desse contorcionismo eriçado ao desfile das vaidades fracassadas, à medida que
o arco arqueia na arcada contra a luz da impermanência.
Os sonhos não serão mais os mesmos. Embora o cinema
continue vazando pelas suas técnicas de representação os fragmentos oníricos em
jatos de luz e sombra. Nessa seara, desconfia- se que o cinema (por reflexo)
absorverá o atual surto infeccioso e realizará sua síntese pós-pandemia. Como
se trata de uma língua universal, patrimônio de sensibilidade, sua trajetória é
imprevisível. As mudanças, transitando em novas configurações, permitirá ao
cinema depurar a sua inocência perdida.
Insinua-se vivermos em espanto numa catedral
gótica. Se antes o atrito era mecânico, agora é quântico: o invisível
identifica o vírus ao pixel. Ou seja, a imagem digital e a infecção viral
possuem o absurdo da convergência. Conquanto esta produz a aberração da
morbidade, aquela busca dar sentido ao real. O estado de exceção (guerra) em
luta com o estado de expressão (invenção). Uma transição inserida na onda da
bolha que revela, de uma vez, a precariedade do existir. É possível sair dela e
retornar à “vida normal” de antes? Ou estaremos na iminência de um
esvaziamento?
José Umberto é cineasta e escritor
Publicado na "Tribuna da Bahia", edição desta segunda-feira, 1
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