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quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Entrevista com o cineasta José Umberto



O cineasta José Umberto Dias iniciou suas atividades na área em 1968. Desde então, não abandonou mais o Cinema, seja como diretor, roteirista ou nas etapas de fotografia e montagem. O sergipano de Boquim traz à Mostra Cinema Conquista o longa "Revoada", exibido na noite de abertura do evento. Em entrevista, José Umberto conta as expectativas para a Mostra, a importância de estar em Conquista, terra natal de João Omar - responsável pela trilha sonora do filme -, e defende a bandeira de um cinema que dialogue e estimule.

Como você recebeu o convite para participar da décima edição da Mostra Cinema Conquista, sabendo que Revoada foi escolhido para a abertura do evento?

A satisfação primeira de ser a terra de João Omar, que fez a trilha musical do filme. Trabalhamos juntos em simbiose. A música é o elemento mais abstrato no cinema, que forma o conjunto de unidade plástica. E, nesse aspecto, logo logo nos demos conta da nossa integração em campos distintos, porém superpostos. Como a matéria e o espírito justapostos. E a música funcionando como sinal luminoso que decompõe o campo de força. O campo telúrico de personagens em função de crise. Que a música, nessa atmosfera dramática, pontuasse o sentido e o sentimento de cenas conflituais. Uma abordagem sonora em sintonia com a partitura dos ruídos e a arquitetura das imagens brutas. Assim desenvolvemos a camada plástica de Revoada com o tom de fuga, como se o fundo fosse se afastando ao ritmo de fugatas bachianas e ao estímulo das cores barrocas de Caravaggio. Isso tudo no processo de sublimação da retenção de raízes regressivas dominadoras para o vôo transcendental da criação autônoma. E, nessa encruzilhada de níveis de escolha, tanto João quanto eu demos as mãos ao esforço da busca do humano no seu matiz sutil, subjacente. Assim trabalhamos num recorte lingüístico onde ecoa os mais profundos silêncios da imagem em movimento. A música no cinema não é mais música: é o último sentido audível da matéria. E o cinema não labuta com a música. O cinema, em si, é música do olhar. Uma transfusão em ondas e atração de opostos. E Glauber, patrono da terra, intuía também toda essa sinfonia dodecafônica da imagem que tremula na consciência.
Quais as expectativas para a participação na Mostra Cinema Conquista - Ano 10?
Essas mostras de cinema pululam pelo mundo. O que revela uma janela de esperança num planeta tão conturbado, irado e sub consciente. A `Mostra de Conquista´ é um alento porque é um sopro de vitalidade. Um evento voltado para o ato criador e a invenção. Uma vez que o cinema vem sendo tragado pela indústria cultural. Pela avalanche do clichê e da violência. E nós estamos aqui presentes para celebrar o cinema no seu vigor, na sua essência de linguagem e na alegria por inventar. Uma celebração voltada para a 'aldeia global' da expressão. Um cinema que invada os rincões mais ilustres e mais recônditos da alma. Um cinema que dialogue e estimule. Numa atitude que possa contribuir para transformar o nosso cenário de exclusão na tela ou analfabetismo cinematográfico. Precisamos incluir os jovens e todos às telas, pois o cinema tá de costas pro povo. E é a população, através do Estado, quem paga pra gente fazer cinema. Então, temos que reverter essa situação. Teremos que rever os nossos filmes. Reatualizar a distribuição e a exibição. Pois as nossas crianças e a nossa juventude necessitam de mais telas por esse Brasil a fora para saborear o êxtase do "escurinho do cinema".
Como surgiu o interesse pela temática de Revoada?
Não surgiu, brotou. Meus filmes não vêm, surgem. Nasce de dentro. A temática poderia ser a saga samurai. Afinal, amo a épica Kurosawa. Mas nasci ocasionalmente no sertão de Sergipe, justo na fonte da mata de Boquim e, quando vim ao mundo, Lampião fora assassinado há dez anos, próximo de onde nasci. E o mito não morre. Ele se transmuta em narrativas. Ouvia os cantadores de feira, lia os livretos de cordel, Luiz Gonzaga estampava o seu chapéu de couro batido na frente com as estrelas de Salomão da Bíblia. Aquilo tudo ia transbordando o meu sergipanês, entende? É um linguajar da velocidade da luz que se introduz pelos sintagmas de nossos neurônios infantis que vão até o túmulo onde o cérebro se liquefaz. Isso constitui um torvelinho de emoções e gravações na alma do vivente. Depois, o cangaço é o único gênero cinematográfico que detemos. Ele percorre o nosso imaginário como um corisco desenfreado. E é depositário de um arcabouço riquíssimo na literatura, nas artes plásticas, música, teatro, cerâmica, nos contos orais, na indumentária, na linguística, na ensaística… no romance moderno exemplar de um Zé Lins do Rêgo… passando pelos bonecos sublimes de Vitalino a lembrar dos santos barrocos mineiros do genial Aleijadinho que vai respingar nas epifanias de Guimarães Rosa. Além do fato de que o 'rei' Lampião também filmou ao lado do mascate libanês Benjamin Abrahão. Quer dizer, as motivações são múltiplas, brotam do meu coração e ganham sentido na minha mente. Uma temática portanto de imanência. E bastante rica de paradoxo dramático. Aproximando-se inclusive do koan zen. Assim o cangaceiro se manifesta e assim eu o cultivo: um ser intuitivo integrado ao seu ecossistema sertanejo. Sobretudo gente. Gente que sofre, ri, chora, ama, odeia, sonha, faz planos de vida e teme a morte. Daí seu potencial de personagem catártico. Uma figura modelar de banditismo social que encontramos similaridade em ocorrências fenomênicas em todos os continentes da Terra. Embora no nordeste brasileiro ele assuma uma estampa genuína. Essa epiderme se reveste interiormente de um código de honra onde a passionalidade da vendeta assume o papel central de um monólito da ancestralidade arquetípica. E foi nesse núcleo que bebi da fonte inspirada da ambígua e inescrutável natureza humana.
Por que abordar o sertão e o cangaço, mais especificamente o seu fim?
Eu me filio à base fluida dos elementos trágicos. E Revoada bem que poderia intitular-se "o crepúsculo do cangaço". Mas sem abandonar a tradição estética na sua dimensão cíclica. Contanto negando a dualidade do bem e do mal. Esta visão estreita e moralista de "O Cangaceiro", de Lima Barreto, que ganhou continuidade histórica com o nordestern, veio dar o seu salto qualitativo com o documentário clássico Memória do cangaço, do baiano Paulo Gil Soares, cânone sociológico. O meu pensamento sobre o assunto se cristaliza no ano de 1982 quando realizei o curta metragem A musa do cangaço, corolário antropológico de ênfase feminista, e logo depois escrevi o romance Dadá e o ensaio histórico-existencial Benjamin Abrahão, o mascate que filmou Lampião. Este esforço intelectual deixou rastro in-visível e indelével na denominada 'retomada' do cinema brasileiro. A trilogia se fecha com Revoada, que involuntariamente passei mais de duas décadas para finalizar. Sigo a máxima de que “o sertão é dentro da gente”, segundo o mago Guimarães Rosa. Além desse estatuto metafísico, até fáustico, associo-me também à granulação filosófica de que o cangaço emerge de uma fenomenologia de juventude camponesa. A galeria de guerreiros da civilização de couro com um pé na adolescência e o outro na geração jovem. Lampião adentro nas tropas com 17 anos e Dadá, mulher de Corisco, com 13, quando ainda brincava de bonecas. Essa é a ponta de lança de um movimento social periférico que se perde da nossa memória desde o século XVIII. E que adquire a vanguarda universal de admitir em suas fileiras as mulheres. Uma juventude rural que via no cangaço o rito de passagem de afirmação pessoal e ascensão social. Era, sem dúvida, um chamado à rebeldia, à "juventude transviada". O cangaceiro, com seu escudo de audácia, com o seu grau de independência, com a sua mitologia, com sua quadradura de irmandade, seu anseio de revolta diante das injustiças reinantes no latifúndio do coronelismo, sua qualidade armada com tática de guerrilha, seu ímpeto nômade de liberdade na caatinga, seu desempenho de coragem, sua fama nos meios de comunicação de massa então nascentes… o cangaço sendo um símbolo de vida aventureira, perigosa e sedutora. Um quadro de atração para o jovem de tão reduzidas perspectivas de escolha. E esse mote me arrebatou e me possibilitou novas investidas na captação de uma dramaturgia de impacto.
Como foi o processo de realização do filme?
O cinema é um filme dentro do filme na linha de metalinguagem de Truffaut em A noite americana. A busca é longa. Os encontros são repentinos como a vida, "embora hajam tantos desencontros", não é mesmo? Porém, a virtude maior talvez seja a persistência. Aqui no sentido de ter fé na idéia, de acreditar sobretudo. Assim, a gente afina as cordas do instrumento. Desse modo, a gente corporifica e agrega. Cinema em sendo o desafio a essa capacidade de orquestrar. Além da crença, o aperfeiçoamento pessoal de se habilitar em reger o coletivo. Esse afinamento lhe permite conduzir o trabalho com suor e delicadeza. São variadas as questões. E temos que estar disponíveis para respondê-las dentro de nossas convicções e baseadas no nosso repertório. O amadurecimento na condução dos requisitos requeridos significa o grau de segurança que você atinge. O diretor que não passa esse estágio se reflete no teor do resultado. O termo 'realização' é bem amplo. E promete reflexão. Mas indica, acima tudo, entrega. O cinema eu vejo como uma incógnita matemática. A operação insegura redunda em fracasso. O domínio da expressão representa o requisito fundamental. E exprimir requer contato. Relacionar-se com os objetos e com as pessoas. Compreender as nuances do externo e apreender as gradações do interno. Aí você apalpa a essência do seu veículo de expressão. E as coisas fluem… como a cachoeira no seu fluxo espontâneo. Nesse particular, toda a atenção é pouca para o que tem a nos dizer os mestres de ofício nas suas carpintarias pedagógicas.
Quais as maiores dificuldades para se fazer cinema no país, nos dias de hoje?
O ego tá maior que a tela. Narciso cega a imagem. A projeção se apaga na caverna do apego à ilusão. Então se dilui, o cinema se fecha e implode a si mesmo. (…). E o caminho seria a inversão de valores. Cinema, é o que bate na tela e volta em bumerangue mágico. E ela é branca, solene e impura. Temos que ocupar a alvura. Manchar, pintar esse quadro, que não precisa nem de moldura. Alguns cineastas soviéticos fizeram essa ocupação… até a tarde de nevasca em que o poeta Maiakovski dá um tiro no peito. "É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte", alguém depois cantou. Eu, cá nos meus botões, sinto que alguma coisa tá desviada. Não sou lúcido o suficiente para indicar, com régua e compasso, o nível do desvio. Talvez nos falte "alguma poesia", que nos alertara Drummond desde 1930. Aliás, o élan da fraternidade e da generosidade não faria mal a ninguém neste mundo. Relembro que passamos muitos séculos com os créditos dos artistas no anonimato total, como revelam pórticos sublimes de catedrais medievais com seus símbolos imortais, ascendentes. A burguesia inventou essa distorção, esse aleijão da personalidade inflada: o monstro na superfície da beleza. Os nossos ancestrais realizavam suas pinturas rupestres com funções mais nobres (e misteriosas). Talvez tenhamos perdido o elo do senso de mistério. Qual a função do cinema, hoje? Não sei responder com clareza sucinta. O que me inquieta, porém. Só nego o glamour, a aura de celebridade, a banalidade de divertimento, a pornografia de violência, o consumo voraz do desperdício… O cinema tem outro desígnio. Ele é a morada do sonho… da utopia. A urgência que todo ser humano sente batendo à sua porta. A necessidade da leveza do inútil como produto de primeira grandeza. O inútil que não preenche o estômago mas alimenta o espírito. O cinema de pensamento, de sentimento… arejando. Revelando que o copo vazio tá cheio de ar.
Conta um pouco da sua trajetória dentro do cinema: entre tantas atividades, por que optar por essa área?
Sou de uma geração de trajetória meio na contramão. Algo tortuoso como o cubismo de Picasso. Ler, escrever, ver filme & filmar. Plataforma heterodoxa cujo perfil consiste em escrever filmando e filmar escrevendo. Ou seja, a literatura como pedágio para o cinema. Por isso logo cedo comecei a crítica de cinema no extinto Jornal da Bahia. Como o personagem K de Kafka a gente sai por aí batendo na porta da lei… e somos atendidos pelo absurdo. Somos navegantes de um barco embriagado. E ainda por cima sustentamos o pesadelo da história. Essa mania de narrar como herança do mavioso canto das sereias de Homero. Não sei se o cinema é uma opção ou uma situação voluntária. O elemento da natureza que me atraiu para o cinema foi o fogo. Quando menino, me levaram a uma sala de exibição, quando a tela incendiou no escuro. Pronto, o pacto se formou. Fui enfeitiçado. Não consigo viver sem o ritual de ir ao cinema. Não consigo sobreviver sem a liturgia do fazer cinema. Assim o círculo se fecha e eu me sinto nesse labirinto. A perdição pela imagem e a concentração delicada na acústica do som. Uma vertigem, enfim.

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