O cineasta José Umberto
Dias iniciou suas atividades na área em 1968. Desde então, não abandonou mais o
Cinema, seja como diretor, roteirista ou nas etapas de fotografia e montagem. O
sergipano de Boquim traz à Mostra Cinema Conquista o longa "Revoada",
exibido na noite de abertura do evento. Em entrevista, José Umberto conta as
expectativas para a Mostra, a importância de estar em Conquista, terra natal de
João Omar - responsável pela trilha sonora do filme -, e defende a bandeira de
um cinema que dialogue e estimule.
Como você recebeu o convite para participar da décima edição da Mostra Cinema Conquista, sabendo que Revoada foi escolhido para a abertura do evento?
A
satisfação primeira de ser a terra de João Omar, que fez a trilha musical do
filme. Trabalhamos juntos em simbiose. A música é o elemento mais abstrato no
cinema, que forma o conjunto de unidade plástica. E, nesse aspecto, logo logo
nos demos conta da nossa integração em campos distintos, porém superpostos. Como
a matéria e o espírito justapostos. E a música funcionando como sinal luminoso
que decompõe o campo de força. O campo telúrico de personagens em função de
crise. Que a música, nessa atmosfera dramática, pontuasse o sentido e o
sentimento de cenas conflituais. Uma abordagem sonora em sintonia com a
partitura dos ruídos e a arquitetura das imagens brutas. Assim desenvolvemos a
camada plástica de Revoada com o tom de fuga, como se o fundo fosse se
afastando ao ritmo de fugatas bachianas e ao estímulo das cores barrocas de
Caravaggio. Isso tudo no processo de sublimação da retenção de raízes
regressivas dominadoras para o vôo transcendental da criação autônoma. E, nessa
encruzilhada de níveis de escolha, tanto João quanto eu demos as mãos ao
esforço da busca do humano no seu matiz sutil, subjacente. Assim trabalhamos
num recorte lingüístico onde ecoa os mais profundos silêncios da imagem em
movimento. A música no cinema não é mais música: é o último sentido audível da
matéria. E o cinema não labuta com a música. O cinema, em si, é música do
olhar. Uma transfusão em ondas e atração de opostos. E Glauber, patrono da
terra, intuía também toda essa sinfonia dodecafônica da imagem que tremula na
consciência.
Quais as expectativas para a participação na Mostra Cinema Conquista -
Ano 10?
Essas
mostras de cinema pululam pelo mundo. O que revela uma janela de esperança num
planeta tão conturbado, irado e sub consciente. A `Mostra de Conquista´ é um
alento porque é um sopro de vitalidade. Um evento voltado para o ato criador e
a invenção. Uma vez que o cinema vem sendo tragado pela indústria cultural.
Pela avalanche do clichê e da violência. E nós estamos aqui presentes para
celebrar o cinema no seu vigor, na sua essência de linguagem e na alegria por
inventar. Uma celebração voltada para a 'aldeia global' da expressão. Um cinema
que invada os rincões mais ilustres e mais recônditos da alma. Um cinema que
dialogue e estimule. Numa atitude que possa contribuir para transformar o nosso
cenário de exclusão na tela ou analfabetismo cinematográfico. Precisamos
incluir os jovens e todos às telas, pois o cinema tá de costas pro povo. E é a
população, através do Estado, quem paga pra gente fazer cinema. Então, temos
que reverter essa situação. Teremos que rever os nossos filmes. Reatualizar a
distribuição e a exibição. Pois as nossas crianças e a nossa juventude
necessitam de mais telas por esse Brasil a fora para saborear o êxtase do "escurinho do cinema".
Como surgiu o interesse pela temática de Revoada?
Não
surgiu, brotou. Meus filmes não vêm, surgem. Nasce de dentro. A temática
poderia ser a saga samurai. Afinal, amo a épica Kurosawa. Mas nasci
ocasionalmente no sertão de Sergipe, justo na fonte da mata de Boquim e, quando
vim ao mundo, Lampião fora assassinado há dez anos, próximo de onde nasci. E o
mito não morre. Ele se transmuta em narrativas. Ouvia os cantadores de feira,
lia os livretos de cordel, Luiz Gonzaga estampava o seu chapéu de couro batido
na frente com as estrelas de Salomão da Bíblia. Aquilo tudo ia transbordando o
meu sergipanês, entende? É um linguajar da velocidade da luz que se introduz
pelos sintagmas de nossos neurônios infantis que vão até o túmulo onde o
cérebro se liquefaz. Isso constitui um torvelinho de emoções e gravações na alma
do vivente. Depois, o cangaço é o único gênero cinematográfico que detemos. Ele
percorre o nosso imaginário como um corisco desenfreado. E é depositário de um
arcabouço riquíssimo na literatura, nas artes plásticas, música, teatro,
cerâmica, nos contos orais, na indumentária, na linguística, na ensaística… no
romance moderno exemplar de um Zé Lins do Rêgo… passando pelos bonecos sublimes
de Vitalino a lembrar dos santos barrocos mineiros do genial Aleijadinho que
vai respingar nas epifanias de Guimarães Rosa. Além do fato de que o 'rei'
Lampião também filmou ao lado do mascate libanês Benjamin Abrahão. Quer dizer,
as motivações são múltiplas, brotam do meu coração e ganham sentido na minha
mente. Uma temática portanto de imanência. E bastante rica de paradoxo
dramático. Aproximando-se inclusive do koan zen. Assim o cangaceiro se
manifesta e assim eu o cultivo: um ser intuitivo integrado ao seu ecossistema
sertanejo. Sobretudo gente. Gente que sofre, ri, chora, ama, odeia, sonha, faz
planos de vida e teme a morte. Daí seu potencial de personagem catártico. Uma
figura modelar de banditismo social que encontramos similaridade em ocorrências
fenomênicas em todos os continentes da Terra. Embora no nordeste brasileiro ele
assuma uma estampa genuína. Essa epiderme se reveste interiormente de um código
de honra onde a passionalidade da vendeta assume o papel central de um monólito
da ancestralidade arquetípica. E foi nesse núcleo que bebi da fonte inspirada
da ambígua e inescrutável natureza humana.
Por que abordar o sertão e o cangaço, mais especificamente o seu fim?
Eu
me filio à base fluida dos elementos trágicos. E Revoada bem que poderia intitular-se "o crepúsculo do
cangaço". Mas sem abandonar a tradição estética na sua dimensão cíclica.
Contanto negando a dualidade do bem e do mal. Esta visão estreita e moralista
de "O Cangaceiro", de Lima Barreto, que ganhou continuidade histórica com o
nordestern, veio dar o seu salto qualitativo com o documentário clássico
Memória do cangaço, do baiano Paulo Gil Soares, cânone sociológico. O meu
pensamento sobre o assunto se cristaliza no ano de 1982 quando realizei o curta
metragem A musa do cangaço, corolário antropológico de ênfase feminista, e logo
depois escrevi o romance Dadá e o ensaio histórico-existencial Benjamin
Abrahão, o mascate que filmou Lampião. Este esforço intelectual deixou rastro
in-visível e indelével na denominada 'retomada' do cinema brasileiro. A
trilogia se fecha com Revoada, que involuntariamente passei mais de duas
décadas para finalizar. Sigo a máxima de que “o sertão é dentro da gente”,
segundo o mago Guimarães Rosa. Além desse estatuto metafísico, até fáustico,
associo-me também à granulação filosófica de que o cangaço emerge de uma
fenomenologia de juventude camponesa. A galeria de guerreiros da civilização de
couro com um pé na adolescência e o outro na geração jovem. Lampião adentro nas
tropas com 17 anos e Dadá, mulher de Corisco, com 13, quando ainda brincava de
bonecas. Essa é a ponta de lança de um movimento social periférico que se perde
da nossa memória desde o século XVIII. E que adquire a vanguarda universal de
admitir em suas fileiras as mulheres. Uma juventude rural que via no cangaço o
rito de passagem de afirmação pessoal e ascensão social. Era, sem dúvida, um
chamado à rebeldia, à "juventude transviada". O cangaceiro, com seu escudo de
audácia, com o seu grau de independência, com a sua mitologia, com sua
quadradura de irmandade, seu anseio de revolta diante das injustiças reinantes
no latifúndio do coronelismo, sua qualidade armada com tática de guerrilha, seu
ímpeto nômade de liberdade na caatinga, seu desempenho de coragem, sua fama nos
meios de comunicação de massa então nascentes… o cangaço sendo um símbolo de
vida aventureira, perigosa e sedutora. Um quadro de atração para o jovem de tão
reduzidas perspectivas de escolha. E esse mote me arrebatou e me possibilitou
novas investidas na captação de uma dramaturgia de impacto.
Como foi o processo de realização do
filme?
O
cinema é um filme dentro do filme na linha de metalinguagem de Truffaut em A noite americana. A busca é longa. Os
encontros são repentinos como a vida, "embora hajam tantos desencontros", não é
mesmo? Porém, a virtude maior talvez seja a persistência. Aqui no sentido de
ter fé na idéia, de acreditar sobretudo. Assim, a gente afina as cordas do
instrumento. Desse modo, a gente corporifica e agrega. Cinema em sendo o
desafio a essa capacidade de orquestrar. Além da crença, o aperfeiçoamento
pessoal de se habilitar em reger o coletivo. Esse afinamento lhe permite
conduzir o trabalho com suor e delicadeza. São variadas as questões. E temos
que estar disponíveis para respondê-las dentro de nossas convicções e baseadas
no nosso repertório. O amadurecimento na condução dos requisitos requeridos
significa o grau de segurança que você atinge. O diretor que não passa esse
estágio se reflete no teor do resultado. O termo 'realização' é bem amplo. E
promete reflexão. Mas indica, acima tudo, entrega. O cinema eu vejo como uma
incógnita matemática. A operação insegura redunda em fracasso. O domínio da
expressão representa o requisito fundamental. E exprimir requer contato.
Relacionar-se com os objetos e com as pessoas. Compreender as nuances do
externo e apreender as gradações do interno. Aí você apalpa a essência do seu
veículo de expressão. E as coisas fluem… como a cachoeira no seu fluxo
espontâneo. Nesse particular, toda a atenção é pouca para o que tem a nos dizer
os mestres de ofício nas suas carpintarias pedagógicas.
Quais as maiores
dificuldades para se fazer cinema no país, nos dias de hoje?
O
ego tá maior que a tela. Narciso cega a imagem. A projeção se apaga na caverna
do apego à ilusão. Então se dilui, o cinema se fecha e implode a si mesmo. (…).
E o caminho seria a inversão de valores. Cinema, é o que bate na tela e volta
em bumerangue mágico. E ela é branca, solene e impura. Temos que ocupar a
alvura. Manchar, pintar esse quadro, que não precisa nem de moldura. Alguns
cineastas soviéticos fizeram essa ocupação… até a tarde de nevasca em que o
poeta Maiakovski dá um tiro no peito. "É preciso estar atento e forte, não
temos tempo de temer a morte", alguém depois cantou. Eu, cá nos meus botões,
sinto que alguma coisa tá desviada. Não sou lúcido o suficiente para indicar,
com régua e compasso, o nível do desvio. Talvez nos falte "alguma poesia", que
nos alertara Drummond desde 1930. Aliás, o élan da fraternidade e da
generosidade não faria mal a ninguém neste mundo. Relembro que passamos muitos
séculos com os créditos dos artistas no anonimato total, como revelam pórticos
sublimes de catedrais medievais com seus símbolos imortais, ascendentes. A
burguesia inventou essa distorção, esse aleijão da personalidade inflada: o
monstro na superfície da beleza. Os nossos ancestrais realizavam suas pinturas
rupestres com funções mais nobres (e misteriosas). Talvez tenhamos perdido o
elo do senso de mistério. Qual a função do cinema, hoje? Não sei responder com
clareza sucinta. O que me inquieta, porém. Só nego o glamour, a aura de
celebridade, a banalidade de divertimento, a pornografia de violência, o
consumo voraz do desperdício… O cinema tem outro desígnio. Ele é a morada do
sonho… da utopia. A urgência que todo ser humano sente batendo à sua porta. A
necessidade da leveza do inútil como produto de primeira grandeza. O inútil que
não preenche o estômago mas alimenta o espírito. O cinema de pensamento, de
sentimento… arejando. Revelando que o copo vazio tá cheio de ar.
Conta um pouco da sua trajetória dentro do cinema: entre tantas
atividades, por que optar por essa área?
Sou
de uma geração de trajetória meio na contramão. Algo tortuoso como o cubismo de
Picasso. Ler, escrever, ver filme & filmar. Plataforma heterodoxa cujo
perfil consiste em escrever filmando e filmar escrevendo. Ou seja, a literatura
como pedágio para o cinema. Por isso logo cedo comecei a crítica de cinema no
extinto Jornal da Bahia. Como o personagem K de Kafka a gente sai por aí
batendo na porta da lei… e somos atendidos pelo absurdo. Somos navegantes de um
barco embriagado. E ainda por cima sustentamos o pesadelo da história. Essa
mania de narrar como herança do mavioso canto das sereias de Homero. Não sei se
o cinema é uma opção ou uma situação voluntária. O elemento da natureza que me
atraiu para o cinema foi o fogo. Quando menino, me levaram a uma sala de
exibição, quando a tela incendiou no escuro. Pronto, o pacto se formou. Fui
enfeitiçado. Não consigo viver sem o ritual de ir ao cinema. Não consigo
sobreviver sem a liturgia do fazer cinema. Assim o círculo se fecha e eu me
sinto nesse labirinto. A perdição pela imagem e a concentração delicada na
acústica do som. Uma vertigem, enfim.
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