Por
Carlos Alberto Di Franco
Frequentemente insinuada na cobertura
dos jornais, a relação amorosa de Rosemary Nóvoa de Noronha, ex-chefe do
gabinete da Presidência da República em São Paulo, com o ex-presidente Lula
finalmente foi escancarada em recente edição da 'Folha de S. Paulo': "Poder de
assessora vem de relação íntima com Lula", cravou a chamada de primeira página.
A jornalista Suzana Singer, ombudsman
daquele jornal, fez oportuna análise da matéria. Sem usar a palavra "amante", o
jornal conta que, nas 23 viagens internacionais em que Rosemary acompanhou
Lula, a então primeira-dama Marisa Letícia nunca estava.
Segundo a reportagem, havia um
esquema especial que permitia o acesso à suíte presidencial nessas escapadas.
Seria um relacionamento de 19 anos, iniciado quando ela era bancária e ele
candidato derrotado à Presidência da República.
"A Folha invadiu a privacidade de
Lula? Sim. Era necessário? Sim". As respostas de Suzana Singer às interrogações
éticas, curtas e diretas, são redondas. Concordo plenamente.
O jornalismo brasileiro, ao contrário
da imprensa norte-americana, por exemplo, tende a preservar a intimidade dos
homens públicos. As escapulidas dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João
Figueiredo, conhecidas e comentadas nas rodas de jornalistas, nunca migraram
para as manchetes dos jornais.
O mesmo se pode dizer do
comportamento da imprensa com Fernando Henrique Cardoso. FHC teve um filho fora
do casamento. A mídia, embora ciente do fato, preservou a privacidade do
ex-presidente. O episódio foi revelado pela 'Folha de S. Paulo' quando ele, já
viúvo e ex-presidente, reconheceu o filho.
Os episódios, todos, poderiam ser "interessantes" para o público (despertavam curiosidade), mas não eram de
interesse público legítimo. Não estava em jogo dinheiro público.
O caso Lula, no entanto, é bem
diferente. Segundo a Polícia Federal, Rose conseguiu, entre outras coisas, colocar,
em postos estratégicos do governo, amigos corruptos, que vendiam pareceres
jurídicos favoráveis a empresários.
Lula, ainda presidente da República,
prestou - mesmo que não soubesse disso - favores à quadrilha apadrinhada por
Rose. Por sua influência, indicou os irmãos Paulo Vieira e Rubens Vieira para a
direção, respectivamente, da ANA e da Anac. Os irmãos Vieira, ligados a gente
do governo, passaram a vender facilidades a empresários que dependiam de
decisões de Brasília.
Rose, gabando-se de sua relação
íntima com Lula, tinha influência no Banco do Brasil. Trabalhou pela escolha do
atual presidente do BB, Aldemir Bendine e indicou diretores da instituição.
Como foi possível que Rose, uma
antiga secretária do PT, acumulasse tanto poder, a ponto de influenciar em
setores nevrálgicos do governo? Tudo isso, rigorosamente de interesse social,
só ganhou dimensão pública graças ao trabalho da imprensa.
Só isso, e não é pouco, já
justificaria a invasão da privacidade do ex-presidente Lula. A defesa do direito
à intimidade não pode ser usada para impedir a investigação e revelação pela
imprensa de informações de evidente interesse público. O direito à privacidade
não pode ser jamais um escudo protetor.
Cito, amigo leitor, um texto
belíssimo e de grande atualidade: 'A imprensa e o dever da verdade', de Ruy
Barbosa. Recomendo-o vivamente a todos os que se preocupam com a ética
informativa e as relações entre o jornalismo e o poder. Não resisto, caro
leitor, à vontade de aguçar sua curiosidade.
"A imprensa", dizia Rui Barbosa, "é a
vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao
longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o
que lhe sonegam, ou roubam." (...) O poder não é um antro: é um tablado. A
autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim
uma liça. Queiram, ou não queiram, os que se consagraram à vida pública, até à
sua vida particular deram paredes de vidro. Agrade, ou não agrade, as
constituições que abraçaram o governo da Nação pela Nação têm por suprema esta
norma: para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram
escaninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe mistério; e toda
encoberta, sonegação ou reserva, em matéria de seus interesses, importa, nos
homens públicos, traição ou deslealdade aos mais altos deveres do funcionário
para com o cargo, do cidadão para com o país."
Um abismo separa os ideais de Ruy
Barbosa dos usos e costumes da vida pública brasileira. Informação jornalística
relevante é, frequentemente, considerada um abuso ou um despropósito.
A informação não é um enfeite. É o
núcleo da missão da imprensa e a base da democracia. Homens públicos invocam o
direito à privacidade como forma de fugir da investigação da mídia.
Entendo que o direito à privacidade
não é intocável. Pode cessar quando a ação praticada tem transcendência
pública. É o caso dos governantes ou candidatos a cargos públicos. Os aspectos
da vida privada que possam afetar o interesse público não devem ser omitidos em
nome do direito à privacidade.
Não pode existir uma separação
esquizofrênica entre vida privada e vida pública. Há atitudes na vida privada
que prenunciam comportamentos na vida pública. E o leitor e o eleitor tem o
direito de conhecê-las.
Se assim não fosse, tudo o que
teríamos para ler na imprensa seriam amontoados de declarações emitidas pelas
fontes interessadas. E há informações da vida privada –e o caso Rose-Lula é
emblemático- que revelam inequívoca mistura entre o público e privado.
A imprensa tem, então, não só o
direito, mas o dever de invadir a vida privada do homem público. É uma clara
questão de interesse da sociedade.
* Carlos Alberto Di
Franco, diretor do Departamento de Comunicação do Instituto Internacional
de Ciência Sociais (IICS) e doutor em Comunicação pela
Universidade de Navarra.
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