Por Jorge Alfredo
Quem convive com o mestre Tuna Espinheira já
se acostumou com essa espécie de bordão com que ele sempre termina suas
intervenções ou mensagens na internet. Assíduo freqüentador das nossas
reuniões, observa mais do que fala, mas nem por isso deixa de participar
ativamente de todos os nossos inúmeros embates calorosos na APC, essa nossa
empreitada associativa em que nos envolvemos para tentar abrir alas para o
cinema baiano. Várias vezes lhe pedi para escrever algo para o "Caderno de
Cinema", já que ele alem de muito fluente na escrita, entre nós, é um dos que
mais histórias tem pra contar. Mas confesso que tive muita dificuldade no
início. Sempre que lhe pedia para que escrevesse um artigo, ele, meio maroto,
desconversava e a minha curiosidade e desejo aumentavam ainda mais. Então lhe
propus, um dia ao telefone, que a gente trocasse uns emails onde ele fosse me
embasando sobre a sua trajetória, porque eu queria muito fazer um registro, uma
grande matéria sobre ele. E aí citei Glauber Rocha; que dizia que o destino
inevitável da nossa turma era fazer o necrológico um do outro; "um dia, o
íntimo capota e é preciso fazer a página." Não sei se esse argumento teve
alguma importância, mas o fato é que aos poucos a nossa conversa foi fluindo e
ele finalmente aceitou a minha proposta. E aí, munidos de uma cumplicidade
amigável e afetiva acabamos desenvolvendo um jeito um tanto inusitado de fazer
uma entrevista. Ou uma quase entrevista, já que ele não respondia propriamente
as minhas perguntas e ia escrevendo o que lhe dava na telha… Mas, na sequência,
foram se intensificando as trocas de mensagens e a coisa foi tomando prumo em
conversas por telefone e presenciais e fomos juntando as peças desse vasto
tabuleiro. Mesmo assim, preferi ao editar essa matéria, uma fórmula diferente;
são excertos que irei publicando em partes, com a intenção de conseguir dele
esclarecimentos que estão na minha lista de prioridades, mas deixando a coisa
fluir com toda a leveza possível. E aí vou dividindo com vocês, leitores do Caderno
de Cinema, a rica vivência desse amigo cineasta. Com vocês, em conta gotas,
Tuna Espinheira.
O cinema foi, é, a opção preferencial. Sou um
cineasta bissexto. Documentarista por paixão; acho que este gênero não tem
fronteiras, cabe tudo, é infinito. Sebastião Salgado, com um único fotograma,
consegue emocionar, contar estória, perscrutar e analisar a realidade! O que
não é possível ao documentário, com dezenas, centenas, milhares de fotogramas,
com as asas do albatroz, botas de sete léguas, conseguir o impossível e passear
nos Campos do Senhor e dar o seu recado?
Faço filmes como uma espécie de exorcismo,
principalmente quando se trata de ficção, o roteiro é uma peça diabólica, se
não for filmado, vira uma tentação, uma assombração, noites e dias, nada afasta
esta condição agônica, só te uma saída, exorcizar o script o filmando, ou penar
no ossuário geral das utopias.
Só a partir de 1963 tive conhecimento maior
da Roma Negra, já que vim para estudar, no Colégio Central, ainda divisando
alguma coisa que restava deste legendário educandário público. Já trazia a
coceira do cinema no sangue. Aliás, deste os tempos de criança, ainda em
Poções, os filmes foram a minha janela para o mundo, assim como os livros. Em
Salvador a sétima arte fazia parte de todo diálogo inteligente, um verdadeiro
frisson. O famoso "Ciclo do Cinema Baiano", estava em curso. Portanto havia um
entusiasmo geral, o cinema era coisa nossa.
Acontece que, em 1964, a famigerada ditadura,
no começo dos seus malfeitos, colocou uma pá de cal, no movimento
cinematográfico da terrinha. O último filme, totalmente produzido na Bahia,
numa cidade do interior, Feira de Santana, foi o "Grito da Terra", de Olney São
Paulo. Mais de noventa por cento dos cineastas, sem escolha, tomaram o rumo de
se exilar no sul maravilha. O norte para quem queria continuar no meio.
Em meados de 65, embarquei neste êxodo. Com
uma carteira de estudante da Escola de Teatro (BA), me matriculei no Calabouço,
um restaurante fantástico, com almoço e janta, de qualidade, para milhares de
estudantes. Foi uma época franciscana, mas de grandes momentos, jamais deixou
mágoas ou queixas. Vivíamos uma vida vibrante. Independentes. Da nossa
sartreana escolha.
Nos derradeiros anos da década de sessenta,
morei na rua Prado Junior (Copacabana), próxima do Túnel Novo, fronteira com
o bairro de Botafogo. Como nunca fui muito ligado as areias da praia, passei a
exercitar o meu cotidiano, atravessando, a pés, o dito túnel, adentrando na rua
Alvaro Ramos. Lá reinava o Laboratório Líder, cercado por produtoras, pontos de
alugueis de equipamentos cinematográficos. Ponto obrigatório dos viventes ligados
a área do fazer em imagem em movimento.
Minhas universidades de aprendizado (alô
Gorky!) devo eu a esta rua milagrosa. Conheci gente das mais diversas áreas ,
ligados ao meio. Era um espaço livre, pode-se dizer democrático. Vi, ouvi
muitas discussões, brigas, queixumes de uns, ufanismo de outros… Principalmente
vi muitos copões, o material bruto das filmagens. Estranhavam esta minha mania.
É um método confuso, mas me foi muito útil, pra mim era uma forma de mergulhar
na construção do filme. Como tinha carta branca com os obreiros do laboratório,
sempre era avisado das projeções dos copiões e dos filmes lapidados, já
prontos, ao primo canto.
A Embrafilme, ao meu ver, contando os prós e
os contras, significou uma época de ouro. Sobretudo pela existência da sua
sacrossanta distribuidora. Responsável por finalizar e colocar na tela (pelo
menos boa parte deles). Não é como hoje que, sem capital para bancar uma
distribuidora, os filmes vão parar no ossuário geral das prateleiras. Vale
lembrar o apoio desta empresa ao cinema de curta metragem. Este gênero sagrado,
o primeiro passo, onde o cineasta se revela, se deslancha, na marcha para um
lugar ao sol no escurinho do cinema. Cortando a conversa, a Embrafilme caiu
mais pelos seus acertos que pelos seus erros ( estou parafraseando um dito de
Darcy Ribeiro, sobre a queda do Governo Jango).
A derrocada da Embrafilme (no Governo
Collor), foi um Deus nos acuda! Um ensaio do fim do mundo! Anos intermináveis
de vacas magras! Nada mais seria como dantes… Uma nova era, comandada pelas
grandes agencias de publicidade, daria as cartas nas produções dos filmes.
Afinal, elegem os políticos, logo tem o poder, gozam da intimidade com os donos
do dinheiro, logo passeiam no vasto latifúndio das Leis de Incentivo… Fico por
aqui, falar mais é cutucar marimbondos de fogo.
Obtive o abre-alas para o cinema, entre os
anos de 67/68, quando participei do filme de longa metragem, "Um Sonho de
Vampiros", de Iberê Cavalcanti. Minha função inicial era a de assistente de
produção. Na época era um cargo tipo "pau pra toda obra". A parte mais difícil
era arranjar, de graça, coisas ligadas à produção. É só reparar os letreiros
dos filmes mais antigos, inclusive aqueles denominados de "chanchadas" (obras
que costumavam ter um bom retorno nas bilheterias), para se ver os longos
créditos de agradecimentos, era quase um Deus lhe favoreça!
O filme ao qual me refiro, começou a sendo um
e acabou mudando tudo e passou a ser outro, ou seja, foi interrompido, já com
muitas filmagens realizadas. Tenho, por mim, que, um dos motivos principais foi
a perda do ator principal, Grande Otelo (ainda antes de começar a filmar),
levado para o filme "Macunaíma", de Joaquim Pedro.
Uma das minhas tarefas que deu fruto foi
conseguir uma lente de contato azul, para ser usada pela personagem de Otelo.
Processadas de graça pelas Óticas Fluminenses. Nesta época, Grande Otelo, era
um artista de grande popularidade, por onde passamos havia sempre uma
estrepitosa reação das pessoas. Lamentei a perda da oportunidade de trabalhar
com este gênio, ator dos sete instrumentos.
O fato da interrupção do filme e, ato
contínuo, prosseguir com outro roteiro, rendeu para nos quase um ano de
trabalho. Uma sorte para quem queria aprender cinema na prática. Estive
envolvido, desde a pré-produção, na produção, no período das dublagens e
finalização. Um perfeito curso intensivo. Devo, pois, muito a este filme.
Meu primeiro filme, como roteirista e
diretor, "Luis Gonzaga - O Rei do Baião", foi pensado, pesquisado, e filmado,
em torno de três anos, com locações no Rio (Gonzaga morava na Ilha do Governador)
e em vários pontos do sertão, principalmente em Exú (PE), terra natal do
compositor.
Luis Gonzaga era um ídolo da minha geração.
Ouvia -se, e via-se este artista inigualável. Não foi uma nem duas, as vezes
que o "velho Lua" se apresentava, mesmo em lugares onde Judas perdeu as bota,
como Poções e Jequié. Antigamente os grandes artistas da rádio, viravam o
mundo, Brasil afora e adentro.
Através do seu canto suas músicas e criação
de novos ritmos, "Gonzagão" levou ou trouxe nordeste, como um todo (suas
cores, seu cheiro, seu folclore, sua vasta cultura) no bico e no voo livre da
"Asa Branca", para o mundão do continente nacional, notadamente o Sul Maravilha.
Ele foi um autêntico Borba Gato, numa cruzada às avessas.
A produção contou com muitos apoios de
pessoas que faziam cinema, entre eles o Renato Newman, que bancou a maior parte
dos serviços em laboratório. Eu e o Marcio Curi tocamos a produção. Foi num
período dos dias de chumbo, o ato institucional número 5 já estava nas ruas.
Mas o cinema brasileiro ainda vivia os últimos dias, do seu lado romântico. Com
seus anjos da guarda de plantão! Conseguimos finalizar o filme, em 35 mm, 22
minutos! Sabe lá Deus como!
Acho que falei mais que a nêga do leite!
(espero que esta frase não seja vista como politicamente incorreta).
Morando no Rio, participei da formação de uma
produção destinada à feitura de três documentários na Bahia. Eu, Marcio Curi,
Olney São Paulo e Júlio Romiti, seriam os produtores, os filmes "Major Cosme de
Farias", "Cachoeira, Documento da História" e "Castro Alves". Emanoel Cavalcanti, a
convite nosso, rodaria o Castro Alves. Com uma câmera 35 mm, um gravador Nagra,
uma Kombi bastante velha, e a equipe nos mesmos.
Era julho de 1971, rodamos tudo em Salvador e
fomos prá Cachoeira, a parte do Olney. Quem pensa que no cinema tudo são flores,
muito se engana, deste projeto, dois ficaram prontos, mas o do poeta teve um
destino trágico, pelo que se tem notícia, os negativos foram destruídos, em
resultado de desavença entre o Julio e Cavalcanti. Acontecimento doentio, da
série dos que nem Freud explica.
Na III Jornada Brasileira de Cinema da Bahia,
o nosso "Cosme de Farias..." ganharia, o que significou grande força, para
nós os produtores, o importantíssimo prêmio: Walter da Silveira, outorgado pela
Associação Baiana de Imprensa (ABI).
Aconteceu o fato que (quem sabe?), talvez
mereça menção, quando fui receber o dito prêmio, explodiu uma grande vaia,
ofuscando os aplausos. Muitos anos depois, fumando o cachimbo da paz, comentei
com um dos pertencentes à turma daquela apoteótica vaia, nunca entendi porque
vocês detestaram tanto aquele filme, a resposta veio pronta: a vaia foi pra
você, não para o filme. Por incrível que pareça, eu entendi e fiz ver que tinha
entendido. Teria ficado chateado, se a vaia tivesse sido mesmo para o filme, como
foi para mim, assunto encerrado.
Na década de 70, tive participações diversas
produções, entre as quais, como roteirista, diretor, montador e até pequenos
papeis em filmes de longa metragem. Estar em frente da lente (de acordo com a
listagem do currículo) deveu-se a amizade com os três diretores a escolha
(tirante o do filme francês, Marcel Camus, a quem eu fui levado e apresentado
pelo meu amigo, Jofre Soares). Embora eu tenha registro como ator (carteira de
sócio remido no Sated-Rio de Janeiro).
Como foram alguns curtas, da minha lavra realizados
nesta década, vou pinçar dois, por terem estórias a contar. São eles
"Comunidade do Maciel - Há uma Gota de Sangue em Cada Poema" e "Dr. Heráclito
Fontoura Sobral Pinto - Profissão Advogado”, causaram algum rebuliço, mexendo
com a censura e bate boca pela imprensa.
Passo a contar o caso, como o caso foi. Por
ordem: a) "Comunidade do Maciel". Fui convidado para registrar (em imagem em
movimento), esta Comunidade, do (então existente na área do Pelourinho). Ali se
fazia um precioso trabalho comandado pelo antropólogo Vivaldo Costa Lima e o
sociólogo Gey Espinheira. Trabalhava-se como parte do projeto de recuperação do
Pelourinho. Era a parte que tocava nos "Direitos Humanos". A ideia era
registrar a vida diária nesta comunidade, sem qualquer roteiro prévio. Um tanto
quanto à moda do Realismo Italiano (digo a grosso modo).
Com um orçamento franciscano, a escolha tinha
de ser um filme em P&B, em 16 mm. Toda a equipe era composta de um diretor e
um fotógrafo, respectivamente, eu e Roberto Gaguinho, o equipamento uma câmera
Paillard Bollex, de corda, com capacidade de rodar até 30 segundos. Estando
portanto, descartado planos de grande duração.
A área era habitada por diversos tipos de
moradores marcados pela pobreza, abrigava também o meretrício já bastante decadente.
Malandros, viciados, alcoólatras, biscateiros, os expulsos da "Sociedade
Maior". Como estratégia, passamos um bom tempo caminhando pelas ruas, parando
nos botequins, às vezes, engolindo uns tragos, sempre procurando estar em
companhia dos pesquisadores da Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da
Bahia que, todos os dias coletava informações dos viventes do lugar.
O propósito era marcar as nossas figuras aos
olhares de todos, com a nossa presença. Preparação tática, para o começo das
filmagens. O que resultou em boa estratégia.
O filme ficou pronto, obteve a aprovação dos
principais apoiadores da dita Fundação, foram feitas algumas projeções, com
excelente recepção. Daí veio a Jornada Nacional (de Guido Araújo). De acordo
com a praxe da época, todos os filmes selecionados teriam de passar pela
censura. Aí o bicho pegou. Fui "convidado" a comparecer na sede da Polícia
Federal, então sob o comando do coronel Luis Artur de Carvalho. Guido Araújo,
informado, fez questão de me acompanhar. Fomos atendidos pelo próprio censor,
um ex-padre. Tivemos de ficar horas a fio diante do censor, falando besteira e
sempre frisando: "é o coronel que vai falar com vocês". Depois de um longo chá
de espera, fomos chamados, conduzidos até a sala do inquisidor, sentado numa mesa
grande com a lata do filme (o réu) exposta. Foi tudo muito rápido. Abre o pano:
o coronel fala "o filme está censurada, não pode ser exibido no Festival, nem
em local público. . ." Fiz menção de dizer alguma coisa… ele retomou: "não
há nada para se falar, já disse tudo". Ato contínuo, completou: podem levar
o filme, assumindo cumprir a proibição… bateu forte a mão sobre a lata e a
empurrou em minha direção.
Quando me aproximei para pegar a lata,
consegui pronunciar: "só uma coisa coronel, o que eu digo à imprensa?"
Resposta: "você não tem que dizer nada, mande que eles venham me perguntar."
Na época em Salvador havia várias sucursais
de imprensa, "Jornal do Brasil", "Estado de São Paulo" etc. A notícia da censura
foi nacional.
Nos finais da década de 70, o filme, realizado
em parceria de produção, com o mestre Nelson Pereira dos Santos, "Dr. Heráclito
Fontoura Sobral Pinto", embora premiado do último Festival realizado pelo "Jornal
do Brasil", com ampla divulgação deste e demais segmentos da imprensa. Esbarrou
com outro tipo de censura. Desta vez por um órgão de mídia cultural, a TVE
(Rio de Janeiro), então sob a direção do professor Gilson Amado.
Aconteceu que, o Departamento dirigido pela
jornalista, Marta Alencar, ligado a difusão de filmes brasileiros, resolveu
juntar os filmes "Major Cosme de Farias" e o "Sobral Pinto", para formar um bloco,
no seu programa "Coisas Nossas", exibido pela TV citada. Era um horário cativo
da Embrafilme. Tendo sido surpreendentemente vetado.
Marta reagiu, levando este inexplicável ato
de censura à luz da imprensa. Gilson Amado teve de se explicar e atribuiu ao
seu ato proibitivo ao fato do filme não possuir as devidas qualidades técnicas
que, em verdade o diretor Tuna Espinheira, havia se utilizado da figura
impoluta, veneranda, de Sobral Pinto, para reforçar o mito do chefe comunista,
Luis Carlos Prestes.
Ora, um dos fatos mais marcantes da história
política do nosso país, foi justamente esta defesa do Prestes pelo Sobral. Ele
relata, ao vivo, diante da câmera, este histórico acontecimento. Foi isto que
enfureceu o conhecido educador, aqui atuando como censor.
O programa não foi ao ar, mas a ditadura que
já começava a cair de podre, não conseguiu banir o filme.
Fecho aqui minhas proezas cinematográficas na
década de 70.Fonte: "Caderno de Cinema"
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